Fiquei curioso quando a HBO
anunciou que faria uma série de Watchmen
e que ela seria escrita por Damon Lindelof, uma das mentes responsáveis por Lost. Sempre achei que o material dos
quadrinhos, criado por Alan Moore e Dave Gibbons se prestava mais a uma
adaptação como série do que como filme, ainda que eu ache que Watchmen: O Filme (2008), de Zack
Snyder, tenha feito um trabalho razoavelmente bom.
Meu interesse, no entanto,
diminuiu quando descobri que a série não seria uma adaptação direta, mas uma
continuação. Watchmen não parecia o
tipo de produto que necessitaria de continuação e os quadrinhos basicamente
diziam tudo que precisavam dizer para expor sua visão sobre a ideia dos
super-heróis. As tentativas da DC em trazer de volta esse universo nos
quadrinhos só comprovaram minha impressão, já que todo o material ficou aquém
da obra de Moore. Ainda assim, resolvi assistir a série por pura curiosidade e
o que encontrei me deixou de queixo caído.
É maravilhoso quando um produto
audiovisual não é nada daquilo que você espera e o resultado é muito melhor do
que você poderia imaginar. Foi exatamente isso que Watchmen, a série, fez comigo. Quando eu achava que não havia nada
mais a ser dito sobre a questão dos super-heróis e nossa cultura, sociedade ou
política, a série puxou o tapete sob os meus pés e me mostrou que sim, havia
muito a ser dito e ponderado sobre essas questões, criando algo perfeitamente digno
do legado da obra de Alan Moore. Na verdade, tenho tanto a dizer sobre a série
que decidi dividir minha crítica em três partes, sendo essa a primeira. Aviso
que a partir desse ponto podem haver SPOILERS sobre a série.
A trama se passa na cidade de Tulsa,
Oklahoma, nos Estados Unidos. Se o quadrinho acontecia em 1985, a série se
passa nos dias atuais, embora o mundo que ela apresenta seja um pouco diferente
do nosso mundo por conta de tudo que a HQ mostrou. Se você só assistiu à
adaptação para o cinema de 2008, aviso que essa série continua a história
contada no quadrinho, já que a versão para cinema fez alterações no material
original.
A protagonista é Angela Abar
(Regina King) uma policial da cidade de Tulsa. Em Tulsa a polícia atua com
máscaras, escondendo a própria identidade, e super-heróis são permitidos na
cidade ainda que no resto do país sejam considerados ilegais. Angela atua na
polícia como a heroína mascarada Sister Night e a série começa com Angela
investigando uma série de atentados promovido pelo grupo racista chamado Sétima
Kavalaria. O grupo parece uma derivação da Ku Klux Klan, mas usa máscaras
similares às do Rorschach, um dos protagonistas do quadrinho original,
denotando que concordam com muitos dos ideais preconceituosos do personagem. A
partir dessa investigação, Angela vai aos poucos descobrindo uma conspiração
que envolve o passado dos super-heróis e dela mesma.
Em defesa das reparações
Apesar de se passar nos dias
atuais, a primeira cena que a série nos mostra acontece no século XX. Vemos um
garoto negro assistindo um filme mudo inspirado na figura real Bass Reeves, o
xerife negro de Oklahoma e o primeiro de sua etnia a ocupar aquela função nos
EUA. A sessão de cinema é interrompida por homens da Ku Klux Klan que começam a
matar todos os negros da rua e os pais do garoto o escondem em uma carroça,
fazendo dele o único sobrevivente do massacre.
É uma imagem que remete à figura
bíblica de Moisés, colocado em um cesto por seus pais e jogado em um rio, mas
também remete à origem do Super-Homem, também o único sobrevivente da
destruição de seu povo e salvo por um gesto de sacrifício desesperado de seus
pais.
Já em sua primeira cena Watchmen exibe um diálogo sobre a
mitologia ao redor das histórias de heróis e também com a história de nossa
sociedade. O massacre que assistimos não foi uma mera construção ficcional, mas
uma reconstrução de um evento real conhecido como “O Massacre da Wall Street
Negra”, uma chacina promovida pela Ku Klux Klan que é considerado o maior ato
de violência étnica dos Estados Unidos. Moradores de cinco quarteirões do que
seria o mais rico bairro negro dos Estados Unidos na época, 1921, foram brutalmente assassinados e com isso a Klan
dava o recado de que negros não deveriam ser financeiramente prósperos no país.
Que essa cena de Watchmen seja a primeira vez em que esse
genocídio seja mostrado em um produto audiovisual estadunidense diz muito sobre
o processo de construção do relato da História e sob qual perspectiva esse
relato é produzido. O massacre é citado no seminal ensaio The Case for Reparations escrito por
Ta-Nehesi Coates e que Lindelof diz ter servido de base para as ideias que
trouxe para Watchmen. No ensaio,
Coates argumenta como há, ainda hoje, um abismo social que separa brancos e
negros nos Estados Unidos e que essa desigualdade deriva de séculos de
escravidão, legislações racistas e políticas excludentes, afirmando que
enquanto não houver a devida reparação em relação a isso, o país permanecerá
desigual e injusto.
A pervasividade do racismo e de
ideais de supremacia branca nos Estados Unidos é algo que irá reverberar por
toda a série, mas nos primeiros episódios confesso que fiquei com medo da
direção pela qual a série levaria esses temas. Digo isso porque no início há um
longo debate sobre a polícia de Tulsa poder ou não usar força letal contra os
membros da Kavalaria, levantando discussões sobre brutalidade policial, mas
invertendo a dinâmica étnica que normalmente envolve esse debate. Durante os
três primeiros episódios também vemos a polícia de Tulsa e os heróis que para
ela trabalham, como a própria Angela, invadindo comunidades periféricas brancas
e agredindo a população local em busca dos membros da organização racista.
Por um instante temi que a série
fosse tentar fazer algum tipo de argumento de “racismo reverso”, o que iria
completamente de encontro às ideias do texto de Coates, mas felizmente não é o
que acontece. Revelações posteriores mostram como a polícia de Tulsa estava
também sendo comandada por um racista que tinha interesse em fomentar a disputa
entre a polícia e os supremacistas brancos. Tratarei posteriormente de como
episódios posteriores são mais hábeis em lidar com a relação entre passado e
presente dos Estados Unidos com o racismo e como isso se relaciona com a
iconografia dos super-heróis, mas agora falarei um pouco sobre a construção do
universo ficcional da série.
História alternativa
Tal como a HQ que a originou, a
série se passa em um Estados Unidos alternativo, cuja história do país e do
mundo foi significativamente alterada pela presença de super-heróis. A riqueza
de detalhes com a qual Alan Moore pensou em seu universo alternativo e na
maneira como ele divergia do nosso era um dos grandes méritos do quadrinho e
continua a ser na série, que pensa esse universo mais de trinta anos depois.
A primeira coisa que chama a
atenção é como o 2019 da série é relativamente low-tech se comparado ao 2019 do mundo real. Isso aparentemente
acontece por causa da farsa perpetrada no final do quadrinho no qual Ozymandias
forjou uma invasão alienígena para cessar as hostilidades nucleares entre EUA e
União Soviética. O mundo vive em aparente paz no 2019 da série, mas por conta
do medo da invasão alienígena ou do que teria causado o teletransporte da
criatura dispositivos digitais são muito menos presentes neste universo.
A presença dos heróis também
originou transformações mais diretas na tecnologia, como o fato da polícia usar
naves similares as do segundo Coruja ou paparazzis
usarem trajes voadores similares aos do Mariposa. A série também é hábil em
mostrar as transformações causadas no campo da cultura e das artes. Steven
Spielberg, por exemplo, existe neste universo, mas ele nunca fez o premiado A Lista de Schindler (1993) e sim Pale Horse, filme sobre os eventos do
“ataque” alienígena em Nova Iorque (Pale Horse era o nome da banda que se
apresentava no local em que a criatura se materializou). A produção alternativa
de Spielberg teria similaridades com A
Lista de Schindler, como o uso de preto e branco e a cena de uma garotinha
de vermelho, mas mostra como os eventos influenciaram resultados diferentes.
Esses elementos ajudam a tornar crível esse universo alternativo, tanto em
relação ao nosso quanto em relação ao que conhecemos nos quadrinhos trinta anos
atrás, soando como um desenvolvimento lógico e coerente do que foi criado por
Alan Moore.
A paz também levou ao governo dos
EUA o ator Robert Redford, que já nos quadrinhos era citado como possível
candidato. Na série, Redford funciona como um contraponto ao também ator Ronald
Reagan que se tornou presidente na década de oitenta e teve um governo marcado
por políticas conservadoras. Aqui, o governo de Redford é o oposto, tendo
promovido ações afirmativas e de reparação racial, inclusive indenizando a
população negra, o que desperta o ódio de movimentos racistas como a Sétima
Kavalaria.
Nesse sentido, a série parece
fazer um paralelo com o mundo real, no qual o retorno de forças fascistoides e
excludentes de outrora está ligado a uma recusa de não ver as populações
consideradas “inferiores” sendo tratadas como iguais. Também estaria ligada a
uma recusa em querer admitir que sim, nossos ancestrais brancos foram racistas
e causaram danos a diversas minorias sociais que reverberam por décadas.
A série também mostra como a
farsa da invasão alienígena foi mantida ao longo das décadas, com constantes
“chuvas” de pequenas criaturas alienígenas ao redor do mundo, mantendo o pânico
vivo e criando toda uma indústria de proteção contra ataques alienígenas, como
é demonstrado no episódio centrado em Wade/Looking Glass (Tim Blake Nelson). As
consequências da vitória na Guerra do Vietnã também são exploradas aqui, mostrando
como o Vietnã foi incorporado aos EUA, virando o 51º estado do país. A
incorporação do Vietnã servirá mais para frente para discutir o colonialismo
dos Estados Unidos e como a iconografia dos super-heróis teve (tem) um papel
essencial em fazer o mundo aceitar o imperialismo estadunidense, mas isso fica
para as partes posteriores do meu texto. Fiquem ligados para a segunda parte.
Trailer
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