sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Crítica – Watchmen (Parte 2 de 3)


Análise Crítica - Watchmen (Parte 2 de 3)


Review – Watchmen (Parte 2 de 3)
No texto anterior mencionei como Watchmen começava já deixando claro os temas que seriam centrais para sua narrativa e parecia usar um massacre étnico real ocorrido nos Estados Unidos para falar do racismo institucional no país, tentando fazer algumas relações entre isso e a iconografia dos super-heróis. Na primeira parte analisei como, apesar das qualidades, os primeiros episódios não deixavam muito claro exatamente até onde a série queria levar esses temas, mas, conforme a temporada foi se desenvolvendo, se tornou possível ter um melhor vislumbre do caminho que a narrativa queria seguir. Assim como na primeira parte, aviso que o texto pode conter SPOILERS.

Através do espelho


É no quinto episódio que a série começa realmente a decolar e a mostrar até onde deseja levar a complexidade de seus temas. Até então o mistério principal de quem era Will Reeves (Louis Gossett Jr), qual o motivo dele ter matado o chefe de polícia Judd (Don Johnson) ou quem exatamente era a Sétima Kavalaria vinha sendo cozinhada em banho maria enquanto a trama focava em desenvolver seus personagens e o universo ao redor deles. As coisas começam a mudar no quinto capítulo, centrado em Wade/ Lookin Glass (Tim Blake Nelson).

Desde os primeiros episódios Looking Glass se mostrava consideravelmente parecido com o Walter Kovacs/ Rorschach, por conta da máscara que cobria todo o rosto, o comportamento paranoico, o hábito de não tirar a máscara nem para comer (e a preferência por feijões enlatados), ainda que Glass estivesse aparentemente do lado oposto do espectro político. Ao vermos suas origens no início do capítulo cinco, vemos o quanto ele era próximo de Kovacs.

Wade era o mesmo tipo de conservador religioso e moralista carregando placas de fim do mundo, mas tem a vida transformada justamente por conta do ataque encenado por Adrian Veidt. Se, no entanto, Rorschach usava a sua máscara como uma substituição de seu “eu” real, as razões de Wade para passar boa parte de seu tempo mascarado são bem diferentes. Wade é motivado pelo medo, pelo trauma do que presenciou durante a aparição da criatura.

Wade pauta toda a sua existência em se prevenir de outra invasão alienígena e Tim Blake Nelson é ótimo em evocar o senso de isolamento e desamparo de Wade, um homem com um constante semblante de derrota. Na verdade todo o episódio é permeado por uma sensação de temor, incerteza e fracasso que remete à série The Leftovers, também produzida por Damon Lindelof e que também abordava, como este episódio de Watchmen, um grupo de pessoas cujas vidas foram tomadas por uma catástrofe que não entendem.

Falando em sentimento de derrota, é bastante acertado que a série escolha usar o Requiem composto por Mozart na cena em que Wade descobre a verdade sobre a criatura alienígena. Um réquiem é uma música fúnebre dedicada aos mortos e oferecida como um repouso a sua alma. Ao longo da série o Requiem de Mozart irá tocar várias vezes e sempre para “sepultar” uma verdade que os personagens tinham como absoluta. Isso acontece com Wade neste quinto capítulo, acontece com Angela em um capítulo anterior quando ela descobre os robes da Klan do chefe de polícia, um homem que ela admirava, ou no fim do julgamento de Adrian Veidt (Jeremy Irons) em Europa.

É o senso de que o mundo em que acreditava desabou e nada mais lhe resta a não ser tentar entender o que está acontecendo que motiva Wade a trair Angela, possivelmente sua única amiga, e entregá-la a Laurie Blake (Jean Smart). Isso serve como pontapé inicial para o que é um dos melhores episódios da série.

 História passada e presente


O sexto episódio finalmente conta a origem de Will Reeves, o suposto avô de Angela e aparentemente o homem responsável pelo assassinato do chefe de polícia Judd. A história é contada depois que Angela toma Nostalgia, uma droga que armazena as memórias das pessoas e faz quem tomar (independente de ser o dono das memórias ou não) reviver as memórias contidas nos comprimidos. Assim, Angela revive as memórias do avô, o que traz algumas revisões no cânone do universo de Watchmen.

A ideia de transformar nostalgia em uma droga perigosa é, em si, uma boa sacada, principalmente para os tempos de saudosismo em que estamos vivendo, com as pessoas se refugiando em elementos presentes em sua juventude como fuga dos problemas que vivenciamos hoje. A indústria cultural teve um papel decisivo nessa onda nostálgica, explorando esse passadismo como uma commodity e produzindo diferentes reboots e reinvenções, nos mantendo presos a muitas lembranças sem, no entanto, ter nada a dizer sobre esse passado. Olhar o passado sem ter uma âncora no presente, como aponta a série, pode ser perigoso e pode nos manter presos nesse passado. No entanto, o texto ainda mostra o quanto entender o passado é importante para a compreensão do presente.

A partir do momento em que adentramos as memórias de Will, as imagens se tornam preto e brancas e em muitos momentos Angela substitui o avô nas imagens. Essa escolha é feita tanto para denotar que é Angela quem está vivenciando as memórias do avô em primeira pessoa, mas também que as vivências de Will são similares às de Angela. Ambos têm um desejo de fazer justiça, ambos são vítimas de atos racistas, ambos partilham da frustração de não conseguirem combater o racismo por vias legais e ambos decidem se tornar vigilantes mascarados em algum momento em suas vidas.

Sim, pois Will é revelado como a identidade secreta do Justiça Encapuzada, um dos primeiros super-heróis a surgirem neste universo e que no quadrinho de Alan Moore nunca tenha a identidade revelada. O quadrinho, no entanto, deixava subentendido que ele era um homem branco pelo que era possível enxergar de seu rosto a partir da máscara e a ideia de que ele, na verdade, era um homem negro em “whiteface” pode parecer estranha para fãs puristas do trabalho de Alan Moore, mas não deixa de ser uma decisão que dotada de sentido.

Se olharmos com atenção o visual do Justiça Encapuzada funciona como uma espécie de anti Ku Klux Klan, com seu capuz negro pontudo se opondo ao capuz branco da Klan. Além disso, o nó de forca que ele usa no pescoço é um símbolo que se relaciona com os crimes raciais perpetrados pela Klan, que deixavam negros enforcados em árvores, algo que acontece com o próprio Will na série. Ao usar o nó no pescoço é como se Will tentasse usar contra seus inimigos o próprio símbolo de medo criado por eles.

O racismo e preconceito enfrentados por Will não vem só de pessoas propriamente racistas como membros da Klan ou da misteriosa organização chamada Ciclope, mas também de pessoas ditas progressistas e próximas de Will. Isso fica evidente no modo como o Capitão Metrópolis (Jake McDorman), um super-herói amigo e amante de Will, menospreza as denúncias sobre o Ciclope, dizendo que uma conspiração racista era invenção da cabeça de Will e que enfrentar esse tipo de organização não daria visibilidade a eles, como se esse fosse um assunto menor.

A negação do racismo como um problema social a ser enfrentado é uma das razões pelas quais Angela passa pelas mesmas experiências do avô e remete ao primeiro episódio e ao que mencionei sobre o ensaio A Case for Reparations, que demonstra como o racismo foi permitido a continuar nos EUA e a necessidade de lidar com as consequências disso. O sexto episódio demonstra, através das histórias de Will e Angela, da fusão entre passado e presente, como o racismo perdurou no pais e as desigualdades provocadas por ele continuaram a gerar consequências.

A ideia de que o Justiça era um homem negro se passando por branco também dialoga com a primeira cena do primeiro episódio, o Massacre da Wall Street Negra e o filme de Bass Reeves. O xerife de Bass Reeves usava uma máscara em parte para esconder sua etnia, para evitar o racismo da população branca local em ter um homem negro como um vigilante da lei. A motivação para Will se pintar de branco é derivada justamente de Bass, já que Will era o garoto assistindo o filme no primeiro episódio. Como diz um personagem da série “um homem branco de capuz é um herói, um homem negro de capuz é uma ameaça”. A fala remete a uma ideia de como a iconografia dos super-heróis está também conectada a uma visão de mundo branca e dotada de certos preconceitos, mas essas ideias eu explorarei na terceira e última parte.


Confiram aqui a primeira parte

Confiram aqui a segunda parte

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