No texto anterior sobre Watchmen falei como a série explora a
questão da história e memória racial dos negros nos Estados Unidos associado à
iconografia dos super-heróis. Nessa terceira e última parte vou mostrar como a
série adentra ainda mais nesses temas em seus três últimos episódios revelando,
inclusive, como a ideia de super-heróis pode estar associada a ideias de
soberania nacional ou racial.
Peles e máscaras
O sétimo episódio explora ainda
mais o passado de Angela Abar (Regina King), mostrando a infância da personagem
no Vietnã e como ela se tornou órfã. É curioso que se a origem de Will remetia
à do Superman, aqui a origem de Angela está próxima do Batman, com ela vendo os
pais serem assassinados em um crime violento. O passado de Angela nos permite
compreender como ela foi impelida ao vigilantismo por uma série de fatores e
também o peso que a representatividade tem na vida da personagem.
Descobrimos que seu alter-ego
heroico, a Sister Night, foi inspirado por um antigo filme de blaxploitation cuja capa viu na infância
apesar do filme ser inapropriado para sua idade e nunca efetivamente tê-lo
assistido. Ela se identifica com a heroína simplesmente por ser a única que se
parece com ela, uma referência de que ela pode ser essa heroína, que pode ser
uma protagonista da própria história e, de algum modo, isso a inspira. Nesse
momento a série lembra da importância da representatividade, do ato de se ver
representado na tela e se sentir valorizado, ter a existência reconhecida.
Nesse sentido, a série também nos
lembra o que está em jogo dentro dessas representações de super-heróis e como
esse tipo de história e personagem está ligado também a ideais da supremacia
estadunidense e modo como essa nação se enxerga como a “polícia do mundo”. Isso
fica evidente nos murais com pinturas do Dr. Manhattan espalhados pelo Vietnã.
Em alguns o personagem é mostrado como um salvador, em outros vemos os nativos
do local pichando a figura do herói para mostrá-lo como um genocida.
Essas imagens remetem à quebra do
maniqueísmo associado aos super-heróis que Alan Moore fez tão bem no quadrinho
original e que é expandido aqui. O herói de um é o opressor do outro. As coisas
não são simples no mundo real e não há um bem e mal absoluto como na ficção. A
série nos lembra disso e como essas histórias de super-heróis nos fazem ver o
mundo sob a perspectiva dos Estados Unidos, naturalizando a postura
intervencionista deles como se fossem de fato heróis do mundo que estão sempre
certos, quando isso não é caso.
O teórico Frantz Fanon já falava
sobre como as artes tinham esse poder de fazer o colonizado pensar como o
colonizador e achar que o colonizador estava certo e pleno em seus direitos de
forçar sua visão de mundo em outras populações. No livro Pele Negra, Máscaras Brancas, Fanon usava o exemplo dos filmes de Tarzan
(um exemplo que é citado em Infiltrado na Klan, do Spike Lee) para mostrar como Hollywood faz populações colonizadas
torcerem pelo opressor. O autor citava exibições de filmes de Tarzan no
continente africano no qual a população local vibrava e torcia enquanto Tarzan
matava nativos da África em seus filmes, não se dando conta de que,
simbolicamente, endossavam seu próprio extermínio.
Deter o controle sobre a
construção dessas representações seria, portanto, uma maneira de deter o
controle sobre como se é representado e visto pelo mundo. Nesse sentido é
curioso que o terrorista vietnamita que mata os pais de Angela seja visto antes
manejando um fantoche do Dr. Manhattan. É como se ele quisesse tomar o controle
desse ser superpoderoso para, de alguma maneira, retomar o controle da própria
vida que foi radicalmente alterada por conta do intervencionismo de Manhattan
na guerra do Vietnã.
A questão da representação não
está conectada somente à soberania nacional, mas também, de certa maneira, a
exaltar a supremacia daqueles que são construídos como super-heróis e, nesse
sentido, os heróis são tipicamente homens brancos. Isso remete ao que falei na
segunda parte do texto sobre um diálogo da série que há dois pesos e duas
medidas quando se avalia a conduta de um negro mascarado e de um branco
mascarado. Ao manter durante décadas a ideia implícita de que todos esses
homens com qualidades físicas e mentais são superiores a todos os demais essas
histórias também estão, de certa maneira, dialogando com ideais racistas
arcaicos de supremacia branca.
O próprio Alan Moore, autor de Watchmen nos quadrinhos disse uma vez
que o primeiro filme de super-herói feito nos EUA foi O Nascimento de Uma Nação (1915), de D.W Griffith. Para quem não
conhece, o filme de Griffith constrói os membros da organização racista Ku Klux
Klan como grandes heróis com o dever de salvar a nação da selvageria dos
negros, agora libertos com o fim da escravidão pós-guerra civil. Não deixa de
ser curioso que o primeiro filme sobre vigilantes encapuzados em busca de
justiça produzido nos EUA tenha sido um fundamentalmente racista.
A ideia de que a mitologia dos
super-heróis está, de alguma maneira, conectada ao racismo encontra eco direto
no plano final da Sétima Kavalaria. Para trazer de volta a supremacia branca a
um mundo preocupado com justiça social, igualdade e reparação étnica, o líder
deseja ele próprio se tornar um super-herói indestrutível ao roubar os poderes
do Dr. Manhattan. Tal como o vietnamita com um fantoche, o líder da Kavalaria quer
tomar para si o controle das representações de super-heróis.
Onipresença e onisciência
O oitavo episódio é, junto com o
sexto, o melhor da série ao contar tudo sob a perspectiva do Dr. Manhattan,
tentando deixar o público imerso na maneira singular com a qual o personagem
experimenta o mundo, vivendo todos os tempos ao mesmo tempo. A maneira com a
qual o episódio faz isso deriva muito da montagem e da sensação de
invisibilidade e continuidade que a montagem do episódio traz a cada corte na
imagem. Um exemplo disso é quando Manhattan pega o dispositivo de memória com
Veidt (Jeremy Irons). Um plano detalhe nos mostra ele pegando o objeto na mão e
a mão se fechando, mas quando a mão se abre ele já está em seu apartamento com
Angela meses depois.
A cena não dá a impressão de uma
elipse ou passagem de tempo e sim a impressão de simultaneidade, de que aqueles
dois momentos de fato aconteceram em sucessão imediata um do outro porque, para
Manhattan, de fato aconteceram do modo imediato que assistimos. Desta maneira,
o episódio nos faz compreender perfeitamente como é enxergar o mundo sob o
olhar de um sujeito que está em todo lugar o tempo todo.
O episódio em questão também
explica como Veidt foi parar em Europa e o porquê dele achar aquilo inicialmente
uma utopia, apenas para tentar fugir anos depois. O arco de Veidt revela a
postura mitômana do personagem, que quer ser reconhecido como salvador da
humanidade, mas nunca consegue mantê-la de fato salva porque novos problemas
sempre surgem no horizonte. Ir para a lua de Júpiter viver com os humanos
dóceis criados por Manhattan seria uma chance de Veidt de viver sua utopia, mas
o personagem logo se dá conta de que um mundo que não precisa ser salvo não
precisa dele e não lhe dá propósito de existir. A idolatria vazia das criaturas
de Manhattan não lhe dá nenhum prazer.
Os humanos “puros” criados por
Manhattan também servem para mostrar como as características negativas do ser
humano são tão essenciais para nossa personalidade como as positivas. Os seres
de Europa, desprovidos de qualquer sentimento negativo, não são nada mais que
marionetes ocas, sem nada mais a oferecer além de uma idolatria e subserviência
acéfala, longe da autoconsciência e livre arbítrio que diferencia os seres
humanos de outras forma de vida.
Nada realmente acaba
O episódio final da série acaba
tendo que correr um pouco para resolver todas as tramas construídas até aqui e
com isso acaba recorrendo a muitos diálogos expositivos para fornecer as
informações necessárias para mover a trama adiante. Em geral a série foi
competente em mostrar sem precisar explicar e é por isso que o excesso de
exposição aqui soa como um passo para trás em termos da inventividade narrativa,
mas de modo algum significa que o desfecho é ruim.
Apesar da velocidade com a qual
tudo se move, o final de fato consegue responder a todas as perguntas
levantadas até aqui e fecha todas as histórias iniciadas desde o primeiro
episódio, encerrando de maneira coerente os arcos de seus personagens e nos
fazendo entender o que moveu cada um deles até esse ponto.
Assim como o quadrinho original,
a série encerra com uma última cena que deixa em aberto o quão definitivo foi a
resolução envolvendo a eliminação do Dr. Manhattan e de seus poderes. Muitos
poderiam pensar na última cena como um indicativo de continuação, mas prefiro
pensar nela como um esforço de evitar dar uma resposta definitiva para as
questões que o final levanta. No quadrinho original o Dr. Manhattan dizia para
Veidt que “nada realmente acaba”, indicando que a solução de Ozymandias para os
conflitos mundiais estava longe de ser definitiva como o personagem pensava. O
desfecho da série traz a mesma sensação de que o mundo continuará girando,
deixando as eventuais consequências dos fatos narrados à cargo da imaginação do
espectador.
Com uma história complexa e
grande esmero narrativo em deixar o público imerso na experiência de seus
personagens, Watchmen se mostra digna
do legado da obra de Alan Moore ao expandir as ponderações dos quadrinhos sobre
a iconografia e mitologia das histórias de super-heróis em nosso mundo.
Nota: 10/10
Leiam aqui a parte 1
Leiam aqui a parte 2
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