É impressionante como Retrato de uma Jovem em Chamas consegue
fazer muito usando tão pouco de elementos, com um número reduzido de cenários e
apenas quatro atrizes durante a grande maioria de sua minutagem. Esses elementos
são mobilizados para criar uma contemplativa reflexão sobre afeto e arte, a
fugacidade da vida e a perenidade da expressão artística.
A narrativa se passa no fim do
século XVIII. A pintora Marianne (Noemie Merlant) viaja a uma isolada ilha após
ser contratada por uma Condessa (Valeria Golino) para pintar um retrato de
Heloise (Adele Haenel), filha da nobre. Heloise está de casamento marcado com o
rico italiano e o retrato é para ser mandado para o noivo para que ele saiba
como é Heloise. Como Heloise se recusa a aceitar o casamento e a posar para um
quadro, a Condessa pede que Marienne finja ser uma dama de companhia de Heloise
para observá-la e pintá-la sem que ela saiba.
Usando pouquíssima música e
deixando longos trechos de silêncio, a diretora Celine Sciamma foca nos olhares
de suas personagens e nas imagens que esses olhares criam. Como Marianne fala
em uma determinada cena, a pintura deriva do olhar, do exame cuidadoso das
feições e maneirismos de uma pessoa para entender como ela se move, como se
expressa.
A direção de Sciamma permite que
façamos exatamente isso, que observemos essas personagens para perceber o que
elas conseguem dizer apenas com o corpo e com o olhar. Assim, mesmo sem nenhum
diálogo que diga isso de maneira explícita, vemos a evolução do sentimento
entre as duas pela crescente ternura no olhar de Marianne, pela curiosidade no
semblante de Heloise que se mostra encantada pela quantidade de coisas que
Marianne tem a lhe ensinar. As cores intensas do figurino (vermelho para Marianne
e verde para Heloise) é também uma maneira de mostrar a intensidade que essas
personagens não verbalizam.
Além de ponderar sobre a força do
olhar, a narrativa também discute a sobrevivência das imagens artísticas. Em
uma cena, Marianne, Heloise e a criada Sophie (Luana Bajrami) discutem o mito
grego de Orfeu. Sophie defende que Orfeu foi estúpido em se virar para ver
Eurídice, perdendo-a para sempre, mas Marianne e Heloise defendem como uma
escolha artística. Orfeu já a tinha perdido e inevitavelmente a perderia de
novo, então ele preferiu preservar a imagem que tinha dela e viver com isso
para sempre.
O mito grego reverbera durante o
percurso da relação entre Marianne e Heloise, afinal as duas sabem que aquele
sentimento é fugaz, que Marianne terá de terminar o quadro e Heloise será
obrigada a casar. Dessa forma, pintar Heloise não é apenas um meio de guardar a
imagem dela, mas o sentimento experimentado pelas duas. A pintura é um meio de
revisitar para sempre esse sentimento e é aí, segundo o filme, em que residiria
a força da arte, no poder de preservar um sentimento no tempo e ser capaz de
transmitir a força e a verdade do sentimento para qualquer apreciador da obra
artística.
A arte e o sentimento contido
nela podem ter uma sobrevivência e um alcance maior do que a própria vida
humana, permitindo as pessoas que se conectem com diferentes olhares de mundo,
diferentes sentimentos. É uma cápsula do tempo da vivência humana no mundo e Retrato de uma Jovem em Chamas defende
com muita sutileza e afeto o poder de permanência da arte.
Nota: 9/10
Trailer
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