quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Crítica – Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar


Análise Crítica – Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar


Review – Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar
Em Tempos Modernos (1936) Charlie Chaplin refletia como o processo de industrialização reduzia o ser humano a uma mera engrenagem do grande complexo industrial capitalista. É difícil não pensar no filme de Chaplin e na imagem do seu personagem carregado em meio às engrenagens de uma fábrica ao assistir este Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar.

Dirigido por Marcelo Gomes, o documentário acompanha o cotidiano de Toritama, um município no agreste pernambucano que se tornou o maior polo de produção de jeans no Brasil. Além de fábricas, boa parte da população também trabalha de maneira autônoma em suas próprias oficinas, sendo a maioria da cidade envolvida nas atividades. Para dar conta do volume de pedidos, a população trabalha de domingo a domingo no ano todo, só parando na semana de carnaval, quando a cidade fica deserta.

As imagens dos trabalhadores em seus movimentos repetitivos trabalhando com o tecido remetem à robotização do trabalhador pelo sistema industrial. Homem e máquina funcionam em simbiose, como se fossem uma coisa só. A narração chega a apontar a agonia que é filmar aquelas ações, como se observar aquilo seria endossar essa desumanização do trabalhador.

É curioso que o discurso desses trabalhadores vai no sentido oposto ao das imagens. Eles dizem adorar o trabalho e a autonomia que sua própria oficina proporciona a eles, permitindo que recebam por produção e façam seus próprios horários. O que eles não percebem e nem o próprio filme parece se dar conta é a contradição entre esse discurso de autonomia empreendedora e a realidade do trabalho, no qual eles precisam de longas jornadas diárias e um calendário praticamente sem folga para poderem garantir a subsistência. Se fossem de fato livres, tal como dizem, poderiam escolher horas mais curtas ou menos dias de trabalho ao ano, no entanto, da maneira como falam, eles não parecem realmente ter escolha.

Também não deixa de ser contraditório que apesar de afirmarem gostar do trabalho e do fato de ser algo estável com o qual podem sustentar as famílias (e nesse sentido é compreensível que eles não reclamem daquilo que põe comida em suas mesas), que a população de Toritama se desespere para deixar a cidade de qualquer maneira na primeira oportunidade de folga. Quando o carnaval se aproxima, as pessoas vendem objetos pessoais e até eletrodomésticos essenciais como geladeiras ou as máquinas que usam para trabalhar apenas para terem dinheiro suficiente para viajarem para fora da cidade no carnaval.

A ação também demonstra a contradição entre o discurso de independência financeira e a realidade em que vivem. Afinal se o trabalho praticamente ininterrupto dessas pessoas realmente garantisse um conforto financeiro, eles não precisariam se desfaszer de objetos básicos para fazer uma viagem. Um dos entrevistados, um homem mais velho, chega a apontar isso, falando sobre o fato de que é um trabalho sem garantias, sem seguro-saúde ou recolhimento de INSS e que a maioria dos jovens da cidade não se importa com isso porque pensam a curto prazo, mas que ele, por ter mais idade já se preocupa com o que vai acontecer quando não puder mais trabalhar ou tiver que diminuir o ritmo, demonstrando a precariedade das condições de trabalho.

Apesar de se colocar em cena com através de sua voz conversando com os entrevistados e também em narrações, o diretor tem uma postura mais descritiva do que analítica, mostrando a realidade daquele lugar, mas refletindo pouco a respeito. Isso não seria um problema se fosse um produto de cunho mais observativo, porém, como o diretor se posiciona dentro da narrativa e até propõe situações aos sujeitos filmados, como quando ele paga a viagem de carnaval de um dos entrevistados, sua postura mais participativa nos faz esperar uma maior ponderação sobre a situação que ele filma.

As narrações até oferecem alguns questionamentos sobre a transformação da cidade por conta da chegada da indústria, como a antes pacata cidade agora passa os dias com o barulho quase ininterrupto das máquinas de costura. Atividades como pecuária ou agricultura, que outrora eram as principais do local, praticamente não são feitas mais ali. Porém, muitas das contradições que as próprias imagens captadas apontam não são endereçadas, inclusive o fato da cidade se manter um local relativamente pobre apesar de ser um dos maiores polos têxteis do país. Ou seja, apesar do trabalho duro dos moradores, pouco do dinheiro advindo da produção fica efetivamente com eles.

Ainda que por vezes soe superficial, Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar oferece um retrato instigante sobre o impacto dos processos de industrialização no interior do Brasil.

Nota: 7/10


Trailer

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