Ano passado Tyler Perry lançou Acrimônia, um pretenso suspense sobre
uma mulher que buscava vingança contra o marido que a traía. Era um produto
inconsistente, que não parecia saber se queria ser um drama sério ou um novelão
caricato e descambava para algo completamente absurdo em seus últimos minutos.
Pois O Limite da Traição, novo filme
de Perry produzido pela Netflix, funciona basicamente da mesma forma que Acrimônia, contando uma história de
traição que começa minimamente calcada na realidade e depois se torna algo tão
surtado que acaba ficando engraçado.
Na trama, a defensora pública
Jasmine (Bresha Webb) é incumbida de defender Grace (Crystal Fox), uma mulher
acusada de violentamente matar o marido. O caso toma a mídia e o chefe de
Jasmine a pressiona para fazer Grace aceitar um acordo com a promotoria e se
declarar culpada, mas Jasmine aos poucos percebe que há algo errado na história
de Grace.
Assim como Acrimônia é a história de uma mulher traída e usada por um cônjuge
abusivo e reage a esses abusos de maneira violenta. Com essa premissa, a
narrativa poderia ser usada para falar sobre machismo e os problemas que
decorrem de uma estrutura patriarcal que trata as mulheres como objetos
descartáveis. A “moral” dos filmes de Perry, no entanto, não tenta defender o
fim das práticas machistas por uma questão ética ou humana, suas narrativas
basicamente argumentam que não se deve tratar mulheres de maneiras desumanas
porque elas são loucas desequilibradas e você vai acabar morto. É como alguns
argumentos abolicionistas do século XIX que defendiam o fim da escravidão para
que os senhores afastassem suas famílias dos convívios dos negros que seriam
naturalmente vis, malignos e violentos.
A narrativa é marcada por várias
inconsistências tonais. Em um momento demonstra ser um drama realista, tanto em
termos dos eventos da trama quanto nas interpretações, em outros adota uma
abordagem histriônica e exagerada que mais parece saída de um romance de banca
de revista. Isso fica evidente nas narrações de Grace sobre sua relação com o
marido, Shannon (Mehcad Brooks), marcado por uma inflexão vocal exageradamente
lamuriosa e por diálogos cafonas como aquele em que Grace diz que estavam tão
em sintonia que completavam as frases um do outro.
O filme é ainda permeado por uma
série de furos e ações que não fazem o menor sentido. Porque Shannon se recusa
a deixar a casa de Grace depois de roubar o dinheiro da empresa em que ela
trabalha e colocar o imóvel de Grace numa hipoteca embolsando todo o valor?
Afinal ele sabe que Grace não teria como pagar a hipoteca e o banco tomaria a
casa, então não faz sentido continuar morando ali. Se Grace consegue as fitas
do banco de Shannon fazendo sozinho a hipoteca da casa e as provas de que ele
falsificou a assinatura dela, porque a polícia se recusa ajudar alegando que
não há crime?
As coisas se tornam ainda mais
absurdas durante o julgamento de Grace. Toda a condução do julgamento soa
exagerada e inverossímil, dando a impressão de que foi escrito por alguém que
não tem a menor ideia de como o judiciário funciona. Jasmine trabalha em um
nível tão grande de incompetência, estupidez e aparente incompreensão de como
um processo é conduzido que é difícil crer que ela tenha conseguido terminar
uma faculdade de direito. Sim, a trama estabelece que ela é inexperiente em
julgamentos, mas mesmo um advogado que nunca precisou argumentar na corte sabe
as regras básicas de um processo. A impressão é que a personagem é transformada
em uma completa imbecil só para que o filme possa jogar vários momentos
bombásticos que não teriam como acontecer se ela se comportasse como alguém
minimamente competente. Falando em exagero, a performance de Mehcad Brooks (o James Olsen de Supergirl) como
marido malvadão e abusivo é tão histriônica que causa mais risos do que um
senso palpável de ameaça.
O terço final e todo o clímax do
filme se torna...bem, é algo tão surtado e cheio de revelações incoerentes que
me faltam palavras para descrever ou adjetivar o que acontece. Se a idosa que
Jordan (Matthew Law) viu cometer suicídio no início do filme estava na casa de
Sarah (Phylicia Rashad), como ele não reconhece o imóvel quando chega lá no
final do filme? Se a suicida era uma pessoa que tinha sido sequestrada, como
ninguém descobre isso? Afinal foi algo mostrado na televisão e tudo mais.
Se a vilã mantinha idosas
acorrentadas em cativeiro para roubar suas aposentadorias, porque deixar porque
deixar Alice solta? Ela queria ter seu plano descoberto? Ou Alice, uma idosa
esclerosada, é algum tipo de mestre de fugas capaz de repetidamente se soltar
das correntes? Se o modo de operar da vilã era manter suas presas em cativeiro,
porque não fez o mesmo com Grace? O filme nunca dá uma justificativa plausível.
Na verdade, todo o esquema de fraude da vilã parece existir só para gerar uma
surpresa e choque.
Para além de problemas
narrativos, a produção também exibe uma considerável parcela de problemas
técnicos. A fotografia parece recorrer sempre a uma iluminação que deixa as
imagens estouradas de luz, fazendo os fachos de luz que entram pelas janelas
(principalmente nas cenas de tribunal) soarem claramente artificiais ao invés
da impressão de se tratar de luz natural do sol que entraria por uma janela
durante o dia. Esse efeito de luz até faria sentido se usado apenas nos flashbacks de Grace, para denotar que
nesses momentos estamos em uma memória e não no mundo “real” da trama, mas como
a luz é usada no filme inteiro desse jeito, a escolha parece despropositada. O
mesmo pode ser dito dos muitos efeitos de montagem, como os constantes fade outs que provavelmente foram usados
para tentar dar mais dramaticidade ao final de cada cena, mas, ao invés disso,
só fazem tudo parecer truncado e sem ritmo.
Com tantos problemas técnicos e
de roteiro somados a inconsistências tonais, furos narrativos e atuações
exageradas, O Limite da Traição é um
daqueles filmes que se torna engraçado justamente por sua ruindade.
Nota: 3/10
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