Eu lembro quando a minissérie Os Maias foi originalmente exibida pela
Rede Globo em 2001 e o quanto ela foi elogiada pela qualidade de sua produção
por reproduzir a Portugal do século XIX. Revendo a série quase vinte anos
depois, fiquei com medo dela não se sustentar, tanto em aspectos estéticos
quanto da narrativa, mas ela permanece esse grande épico que narra a tragédia
de uma família da pequena aristocracia lusitana.
Antes de falar propriamente da
série, preciso sinalizar que escrevi esse texto a partir da versão lançada em
DVD de Os Maias (que também está
disponível via Globoplay). A minissérie, quando foi exibida na televisão,
adicionava narrativas de outros romances do autor Eça de Queiroz (como A Relíquia e A Capital) à trama de Os
Maias para poder render o número de capítulos exigidos pela emissora. A
versão de DVD remove todas essas histórias paralelas e concentra apenas na
trama principal envolvendo a família Maia. Então se você rever a série e
perceber que está faltando alguma coisa em relação ao que viu na televisão, é
por causa disso.
A trama narra o infortúnio da
família Maia, parte da pequena aristocracia portuguesa do século XIX, ao longo
de várias gerações. Pedro da Maia (Leonardo Vieira) é um jovem médico vivendo
em Lisboa que se apaixona pela brasileira Maria Monforte (Simone Spoladore),
cujo pai enriqueceu traficando escravos. Afonso da Maia (Walmor Chagas), pai de
Pedro, é contra a união por conta do passado da família de Maria. Décadas
depois, seguimos a história de Carlos Eduardo (Fábio Assunção). Carlos foi
criado pelo avô, Afonso, depois que o pai se matou e a mãe o abandonou (spoiler
de um livro de mais de 130 anos) e, assim como o pai, torna-se médico. Carlos
Eduardo se apaixona por Maria Eduarda (Ana Paula Arósio), uma mulher casada com
o bruto Castro Gomes (Paulo Betti), a quem não ama, mas não consegue se
separar. Carlos e Maria se apaixonam e começam a ter um caso, no entanto, o
passado de ambos apresenta complicações para o romance.
É, em essência, um melodrama
familiar no qual os dois protagonistas da segunda fase, Carlos e Maria Eduarda,
sofrem não exatamente por conta de suas próprias ações, mas das consequências
das escolhas feitas por seus antepassados anos antes. Eles nunca tiveram chance
porque seus destinos foram selados por conta das ações de Afonso, Pedro e Maria
Monforte décadas antes. As típicas “forças do destino” habituais ao melodrama
decidiram desde o início o que seria do casal sem que eles pudessem fazer nada
para evitar.
Como na época em que Eça de
Queiroz escreveu seu livro as ciências naturais, como a biologia e as ideias de
genes e evolução, ganhavam força, a trama sugere que é por conta da
descendência que Carlos estaria fadado à tragédia, tendo herdado a fragilidade
mental do pai e a impetuosidade da mãe. Ao mesmo tempo, a trama também tenta
entender como o meio, a sociedade em que viviam, direcionou aquele resultado.
Tanto Pedro quanto Carlos demonstram ter aspirações diferentes ao que se espera
de um jovem homem de família rica naquela época e de, certa forma são infelizes
por terem de conformar a esse tipo de vida, vendo em seus interesses amorosos
uma fuga dessa vida. Do mesmo modo, Maria Monforte e Maria Eduarda devem suas
dificuldades e infortúnios ao modo como a sociedade da época via mulheres que
tentavam ser mais independentes, punindo-as por isso.
Não estou aqui querendo dizer que
o texto de Eça de Queiroz era uma espécie protofeminista denunciando o
patriarcado ou qualquer coisa assim. É muitíssimo provável que ele não tenha
escrito sua obra com essa intenção e ele provavelmente via a Maria Monforte
como essa mulher vulgar e temperamental que destruiu duas gerações de uma mesma
família a despeito dos nobres ideais do patriarca Afonso da Maia. A questão é
que independente da intenção do autor, a obra permite que vejamos como essas
estruturas patriarcais ditaram o problemas das duas personagens femininas e a
adaptação de para a televisão, escrita por Maria Adelaide Amaral com seu olhar
logicamente em sua própria época, deixa isso bastante evidente.
Aliás, a minissérie como um todo
é muito eficiente em nos deixar imersos no modo de vida da Portugal do século
XIX. Na estrutura social, nos protocolos, no que as pessoas faziam para se divertir
ou nas discussões sobre política e arte que estavam em voga na época da trama.
Isso se deve não só ao texto, mas também a todo o trabalho de produção,
filmando muitas externas em locação e construindo cenários internos e figurinos
historicamente acurados. A preocupação com uma acuidade histórica naturalista
também se reflete na fotografia e na decisão de usar apenas luz natural, o que
faz as internas exibirem uma constante tonalidade amarelada por conta das
chamas de velas e candelabros usados na iluminação.
Claro, esse tipo de escolha
estética não é nenhuma novidade no audiovisual. Stanley Kubrick já tinha feito
um drama de época com esse tipo de iluminação em Barry Lyndon (1975). Dentro do contexto da teledramaturgia
brasileira, porém, isso era algo bem diferente na época em que foi exibido.
Inclusive lembro de ouvir comentários de pessoas reclamando a série era muito
escura e coisas do tipo. Aqui e ali aparece alguma tomada com um fundo digital
meio tosco, embora isso não tire os méritos da produção nem sua capacidade de
nos envolver no universo habitado por seus personagens.
Já que mencionei imersão, não
posso deixar de falar das escolhas para a trilha musical. Recorrendo a fados
portugueses que ajudam a construir o clima de melancolia da vida dos personagens
ou óperas sobre martírios e sofrimento que se relacionam diretamente com o
calvário afetivo dos sujeitos da trama, a música ajuda a transmitir a
intensidade e grandiosidade dessa trama que estende por gerações, em especial a
música-tema O Pastor, do grupo
Madredeus. Com uma letra fatalista sobre sonhos que se encerram ou como as
coisas não tem retorno e o canto lamurioso da vocalista Teresa Salgueiro, a
canção eleva toda cena em que é inserida e até suplanta algumas limitações ou
excessos do elenco, fazendo as cenas funcionarem em um nível emocional mesmo
quando os atores não alcançam devidamente essas emoções.
Como a versão para DVD edita e
remove praticamente todas as subtramas ou personagens que não compreendem a
narrativa principal de Os Maias, a
montagem muitas vezes soa abrupta, cortando algumas cenas de maneira súbita
demais. Em outros momentos soa redundante, com um corte que nos dá a impressão
de que iremos para outro lugar, apenas para retornarmos para a mesma cena no
ponto exato em que cortou. Provavelmente porque entre esses cortes havia alguma
das tramas paralelas que foram removidas.
De todo modo, Os Maias é uma das melhores minisséries
produzidas pela Globo, com uma envolvente e emotiva trama de tragédia familiar,
um olhar crítico para a Portugal do século XIX, além de uma direção cheia de
sensibilidade de Luiz Fernando Carvalho.
Trailer
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