Confesso que não estava lá muito
empolgado para assistir este Uma Vida
Oculta, trabalho mais recente do diretor Terrence Malick. Apesar de filmes
dele como Além da Linha Vermelha (1999)
e Árvore da Vida (2011) serem alguns
dos meus favoritos de todos os tempos, a impressão é que os trabalhos de Malick
na última década vinham sendo uma repetição apática e vaga de coisas que ele já
tinha feito melhor antes, como o fraco De Canção em Canção (2017). Aqui Malick tem um tema mais claramente definido e
assim suas elucubrações filosóficas parecem mais focadas e consistentes.
A narrativa é baseada na história
real de Franz Jagerstatter (August Diehl), um fazendeiro austríaco que se
recusou a servir no exército nazista durante a Segunda Guerra Mundial por não
acreditar nos motivos nazistas para estarem no conflito. A decisão de Franz
logicamente não foi bem recebida por sua vila e também pelas autoridades,
trazendo pesadas consequências para Franz e sua família.
No centro da trama está o debate
sobre retidão moral, a necessidade de agir corretamente a despeito de represálias
e qual o sentido de se manter firme aos próprios princípios mesmo quando se
sabe que suas ações não serão conhecidas ou entrarão nos registros. Ou seja, existem
basicamente duas questões que Malick tenta debater no filme. A primeira diz
respeito ao que seria mais correto fazer diante de algo sabemos estar errado,
mesmo quando ninguém mais enxerga dessa maneira. Enfrentamos e sofremos as
consequências? Ou somos omissos e esperamos sobreviver? A segunda questão nos
faz ponderar o valor desse enfrentamento mesmo diante da possibilidade de nada
mudar e de que essa luta nunca seja conhecida por ninguém, falhando em inspirar
outros a fazerem o mesmo.
Ao longo de suas quase três horas
de duração Malick tentará desenvolver sua ponderação sobre esses temas e,
apesar de ser bem sucedido no modo como lida com esses questionamentos, ainda
assim fica a impressão de que poderia ter uns vinte minutos a menos.
Principalmente porque alguns segmentos, como a parte da prisão de Franz, acaba
se estendendo um pouco demais e soa um pouco redundante. Não chega a ser nada
como a repetição cansativa dos últimos filmes do diretor, mas se beneficiaria
de uma montagem mais enxuta em muitos momentos.
O que está em jogo nessa trama é
uma batalha pela alma humana. Malick é famoso por seus questionamentos
metafísicos e aqui não é diferente. A jornada de Franz é usada para mostrar
como a virtude e esperança humana não podem se deixar dobrar por forças que
querem tirar nossa humanidade, que tentam nos levar para um caminho de
crueldade que nos afaste do que nos torna humanos e também da natureza. A
estrutura do filme é menos interessada nos acontecimentos em si e mais na
experiência sensorial e cognitiva de Franz para chegar a essa conclusão de que se levantar e resistir ao autoritarismo que tenta estripar nossa humanidade é um imperativo moral.
A montagem costura imagens,
tempos e espaços para nos deixar imersos no fluxo de pensamento do
protagonista. Assim, as imagens de Franz com as filhas e a esposa no campo
entrecortadas por imagens da natureza visam nos fazer sentir essa conexão entre
as pessoas e o espaço em que elas vivem e como tudo isso é importante para o
protagonista. Esse sentimento de que as conexões que estabelecemos uns com os
outros e com a natureza são também ilustradas pelas composições musicais
originais de James Newton Howard e também por composições não originais de
Atonin Dvorak, cujo trabalho, ligado a musica romântica de concerto, se parece
com os de Bedrich Smetana. Smetana teve algumas de suas músicas usadas por
Malick em A Árvore da Vida (2011) e é
conterrâneo de Dvorak, com ambos compondo sobre as terras de seu país natal e
fazendo músicas sobre a contemplação da natureza.
Há um diálogo no filme em que
alguém diz a Franz algo sobre como as pessoas não entenderem Jesus Cristo e que
muitos dos que dizem segui-lo hoje se comportariam como os que perseguiram
Cristo. Ditos cidadãos de bem que não hesitariam em hostilizar e matar aqueles
que discordam deles. Isso fica evidente no arco de Franz, hostilizado pela
própria igreja por defender que os nazistas eram os vilões da história, que o
extermínio de minorias em nada estaria edificando a nação, argumento que é
rechaçado pelos seus vizinhos com falas sobre como Hitler resgatou o país de
uma crise financeira feroz.
É difícil assistir o filme e não
pensar no que está acontecendo no mundo hoje, com líderes fascistoides
comandando países com a anuência de vários setores da sociedade que fazem vista
grossa aos desvios morais e humanitários desses governos sob a justificativa da
manutenção de bons índices econômicos. Como a trama de A Vida Oculta mostra, aqueles que passam pano para fascistas não
estão imunes à virulência e repressão desses líderes, algo evidenciado pela
fala de um sacerdote que diz a Franz que Hitler reprimiu manifestações
religiosas a despeito da igreja tê-lo ajudado em sua ascensão ao poder.
O segundo ponto principal do
filme, a da relevância do enfrentamento feito por Franz a despeito dele ter
ficado praticamente desconhecido da sociedade da época, começa a ser tratado
mais próximo ao final. O texto de Malick nos lembra que mesmo que nossos nomes
não entrem nos livros de história, que não circulem na mídia, que não ocupemos
posições de liderança, nossos atos tem impacto nas pessoas ao nosso redor. As
escolhas que fazemos reverberam naqueles que convivem conosco e, como deixa
claro o letreiro final, muitas ações de potencial transformativo são tomadas o
tempo todo por pessoas que são ilustres desconhecidos, que levaram “uma vida
oculta” no sentido do registro histórico, mas cujo legado viveu adiante nas
pessoas com quem tiveram contato. Essa rede de relações e repercussões pelo
tempo e pelo espaço são o que permitem a persistência do espírito humano.
Por conta de sua ponderação
consistente e impactante sobre o preço e a importância de uma conduta de retidão
moral, Uma Vida Oculta é o melhor
filme do Terrence Malick em muito tempo.
Nota: 9/10
Trailer
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