quarta-feira, 4 de março de 2020

Crítica – Uma Vida Oculta


Análise Crítica – Uma Vida Oculta


Review – Uma Vida Oculta
Confesso que não estava lá muito empolgado para assistir este Uma Vida Oculta, trabalho mais recente do diretor Terrence Malick. Apesar de filmes dele como Além da Linha Vermelha (1999) e Árvore da Vida (2011) serem alguns dos meus favoritos de todos os tempos, a impressão é que os trabalhos de Malick na última década vinham sendo uma repetição apática e vaga de coisas que ele já tinha feito melhor antes, como o fraco De Canção em Canção (2017). Aqui Malick tem um tema mais claramente definido e assim suas elucubrações filosóficas parecem mais focadas e consistentes.

A narrativa é baseada na história real de Franz Jagerstatter (August Diehl), um fazendeiro austríaco que se recusou a servir no exército nazista durante a Segunda Guerra Mundial por não acreditar nos motivos nazistas para estarem no conflito. A decisão de Franz logicamente não foi bem recebida por sua vila e também pelas autoridades, trazendo pesadas consequências para Franz e sua família.

No centro da trama está o debate sobre retidão moral, a necessidade de agir corretamente a despeito de represálias e qual o sentido de se manter firme aos próprios princípios mesmo quando se sabe que suas ações não serão conhecidas ou entrarão nos registros. Ou seja, existem basicamente duas questões que Malick tenta debater no filme. A primeira diz respeito ao que seria mais correto fazer diante de algo sabemos estar errado, mesmo quando ninguém mais enxerga dessa maneira. Enfrentamos e sofremos as consequências? Ou somos omissos e esperamos sobreviver? A segunda questão nos faz ponderar o valor desse enfrentamento mesmo diante da possibilidade de nada mudar e de que essa luta nunca seja conhecida por ninguém, falhando em inspirar outros a fazerem o mesmo.

Ao longo de suas quase três horas de duração Malick tentará desenvolver sua ponderação sobre esses temas e, apesar de ser bem sucedido no modo como lida com esses questionamentos, ainda assim fica a impressão de que poderia ter uns vinte minutos a menos. Principalmente porque alguns segmentos, como a parte da prisão de Franz, acaba se estendendo um pouco demais e soa um pouco redundante. Não chega a ser nada como a repetição cansativa dos últimos filmes do diretor, mas se beneficiaria de uma montagem mais enxuta em muitos momentos.

O que está em jogo nessa trama é uma batalha pela alma humana. Malick é famoso por seus questionamentos metafísicos e aqui não é diferente. A jornada de Franz é usada para mostrar como a virtude e esperança humana não podem se deixar dobrar por forças que querem tirar nossa humanidade, que tentam nos levar para um caminho de crueldade que nos afaste do que nos torna humanos e também da natureza. A estrutura do filme é menos interessada nos acontecimentos em si e mais na experiência sensorial e cognitiva de Franz para chegar a essa conclusão de que se levantar e resistir ao autoritarismo que tenta estripar nossa humanidade é um imperativo moral.

A montagem costura imagens, tempos e espaços para nos deixar imersos no fluxo de pensamento do protagonista. Assim, as imagens de Franz com as filhas e a esposa no campo entrecortadas por imagens da natureza visam nos fazer sentir essa conexão entre as pessoas e o espaço em que elas vivem e como tudo isso é importante para o protagonista. Esse sentimento de que as conexões que estabelecemos uns com os outros e com a natureza são também ilustradas pelas composições musicais originais de James Newton Howard e também por composições não originais de Atonin Dvorak, cujo trabalho, ligado a musica romântica de concerto, se parece com os de Bedrich Smetana. Smetana teve algumas de suas músicas usadas por Malick em A Árvore da Vida (2011) e é conterrâneo de Dvorak, com ambos compondo sobre as terras de seu país natal e fazendo músicas sobre a contemplação da natureza.

Há um diálogo no filme em que alguém diz a Franz algo sobre como as pessoas não entenderem Jesus Cristo e que muitos dos que dizem segui-lo hoje se comportariam como os que perseguiram Cristo. Ditos cidadãos de bem que não hesitariam em hostilizar e matar aqueles que discordam deles. Isso fica evidente no arco de Franz, hostilizado pela própria igreja por defender que os nazistas eram os vilões da história, que o extermínio de minorias em nada estaria edificando a nação, argumento que é rechaçado pelos seus vizinhos com falas sobre como Hitler resgatou o país de uma crise financeira feroz.

É difícil assistir o filme e não pensar no que está acontecendo no mundo hoje, com líderes fascistoides comandando países com a anuência de vários setores da sociedade que fazem vista grossa aos desvios morais e humanitários desses governos sob a justificativa da manutenção de bons índices econômicos. Como a trama de A Vida Oculta mostra, aqueles que passam pano para fascistas não estão imunes à virulência e repressão desses líderes, algo evidenciado pela fala de um sacerdote que diz a Franz que Hitler reprimiu manifestações religiosas a despeito da igreja tê-lo ajudado em sua ascensão ao poder.

O segundo ponto principal do filme, a da relevância do enfrentamento feito por Franz a despeito dele ter ficado praticamente desconhecido da sociedade da época, começa a ser tratado mais próximo ao final. O texto de Malick nos lembra que mesmo que nossos nomes não entrem nos livros de história, que não circulem na mídia, que não ocupemos posições de liderança, nossos atos tem impacto nas pessoas ao nosso redor. As escolhas que fazemos reverberam naqueles que convivem conosco e, como deixa claro o letreiro final, muitas ações de potencial transformativo são tomadas o tempo todo por pessoas que são ilustres desconhecidos, que levaram “uma vida oculta” no sentido do registro histórico, mas cujo legado viveu adiante nas pessoas com quem tiveram contato. Essa rede de relações e repercussões pelo tempo e pelo espaço são o que permitem a persistência do espírito humano.

Por conta de sua ponderação consistente e impactante sobre o preço e a importância de uma conduta de retidão moral, Uma Vida Oculta é o melhor filme do Terrence Malick em muito tempo.

Nota: 9/10


Trailer

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