Misturando ficção e relato
documental, Memórias do
Subdesenvolvimento propõe uma reflexão sobre o estado de subdesenvolvimento
da América Latina e também sobre a Cuba pós-revolução castrista. Lançado em
1968 e dirigido por Tomáz Gutiérrez Alea a partir de um romance escrito por
Edmundo Desnoes, é também um experimento de linguagem audiovisual, tentando
encontrar maneiras de transmitir sua mensagem ser recorrer a uma estrutura
narrativa cinematográfica clássica. Na verdade, o texto parece menos
interessado em contar uma história com início, meio e fim e mais em nos fazer
seguir o fluxo de consciência de seu protagonista.
A película é centrada em Sérgio
(Sérgio Corrieri), um intelectual da classe alta cubana que assiste a vitória
de Fidel Castro e da Revolução Cubana em 1959. De maneira não linear, o filme
mostra a vida de Sérgio desde a revolução até a crise dos mísseis em 1962.
Enquanto a esposa do protagonista e outros de seus parentes optam por deixar a
Cuba pós-revolução para ir para os Miami, Sérgio opta por ficar na ilha, já que
nutre certa identificação com as plataformas da revolução.
A trama de Sérgio é mesclada com
imagens documentais da revolução e outros eventos históricos para acompanhar o
fluxo do discurso e raciocínio do personagem conforme ele se deixa levar por
memórias de infância, juventude, ponderações suscitadas por livros e por suas
andanças pelas ruas. É um trabalho louvável de montagem e de edição de som ao
juntar essas imagens e áudios de tempos e espaços diferentes, que não estão
intrinsecamente conectados e ainda assim consegue dar unidade a esse material e
formar um todo coeso.
O centro das ponderações de
Sérgio é pensar na condição de subdesenvolvimento de seu país e da América
Latina como um todo. O texto aponta para as condições de fome e miséria dos
países latinos e como a fome nesses lugares mata mais que muitas guerras.
Buscando entender o motivo desse subdesenvolvimento, o protagonista passa
inevitavelmente pela condição de colonizado de Cuba (e dos demais países
latino-americanos), primeiro pela Europa e depois pelos EUA. Analisando como a
situação de colônia cria uma situação desigual de poder na qual a colônia
explora o colonizado e fica com tudo que ele tem de valor enquanto o colonizado
vai absorvendo os valores da colônia, se tornando alienado para sua própria
realidade enquanto oprimido e também em relação a sua própria cultura, valores
e história, tornando mais difícil questionar sua situação de colônia.
Nesse sentido, o texto mira na
elite cubana da época, excessivamente tributária de valores estadunidenses,
cuja noção de beleza, bom gosto e progresso derivava completamente do olhar do
colonizador, alheios à noção de que, para os EUA, Cuba não passava de um playground. É difícil não olhar para
esses comentários sobre uma elite com complexo de vira-lata e não pensar na
própria elite brasileira contemporânea, que ainda permanece com uma mente
colonizada, reiterando sensos-comuns arcaicos sobre a utopia estadunidense sem
perceber que para eles não passamos de um povo a ser explorado, como Kleber
Mendonça Filho ilustrou muito bem no excelente Bacurau (2019).
O roteiro, no entanto, também faz
críticas à própria Revolução Cubana e às promessas não cumpridas do ideal
revolucionário. Primeiramente pondera que a libertação do povo cubano não foi
exatamente plena, já que deixaram de ser um quintal dos EUA para se tornarem
quintal da União Soviética, basicamente trocando o colonialismo de uma potência
imperialista que visava difundir sua influência e valores pelo mundo por uma
outra com as mesmas características. Do mesmo modo, pondera que a revolução
prometeu uma nova ordem social, mas ao invés disso importou velhos modelos de
centralização de poder e propaganda ideológica que nada tinham de “novo”.
Boa parte dessa crítica vinha do
fato de que membros do ICAIC (o Instituto Cubano da Arte e Indústria
Cinematográfica), como o diretor Tomáz Gutiérrez Alea, de fato tinha uma
preocupação de repensar a linguagem do audiovisual para que ela servisse ao
povo e falasse mais próxima a ele, contribuído para formar um público mais
crítico ao invés de meramente reproduzir os mesmos modelos que tratavam a
audiência de maneira passiva. Essa preocupação do ICAIC em buscar novas
abordagens e formas de linguagens é manifesta na própria estrutura do filme e
da maneira como ele tenta se afastar de convenções.
A reflexão produzida por Memórias do Subdesenvolvimento é madura
o suficiente para não forçar soluções fáceis para uma situação extremamente
complexa, oferecendo uma ponderação consistente sobre os problemas do
subdesenvolvimento latino-americano.
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