terça-feira, 31 de março de 2020

Rapsódias Revisitadas – Memórias do Subdesenvolvimento




Crítica – Memórias do Subdesenvolvimento

Review – Memórias do SubdesenvolvimentoMisturando ficção e relato documental, Memórias do Subdesenvolvimento propõe uma reflexão sobre o estado de subdesenvolvimento da América Latina e também sobre a Cuba pós-revolução castrista. Lançado em 1968 e dirigido por Tomáz Gutiérrez Alea a partir de um romance escrito por Edmundo Desnoes, é também um experimento de linguagem audiovisual, tentando encontrar maneiras de transmitir sua mensagem ser recorrer a uma estrutura narrativa cinematográfica clássica. Na verdade, o texto parece menos interessado em contar uma história com início, meio e fim e mais em nos fazer seguir o fluxo de consciência de seu protagonista.

A película é centrada em Sérgio (Sérgio Corrieri), um intelectual da classe alta cubana que assiste a vitória de Fidel Castro e da Revolução Cubana em 1959. De maneira não linear, o filme mostra a vida de Sérgio desde a revolução até a crise dos mísseis em 1962. Enquanto a esposa do protagonista e outros de seus parentes optam por deixar a Cuba pós-revolução para ir para os Miami, Sérgio opta por ficar na ilha, já que nutre certa identificação com as plataformas da revolução.


A trama de Sérgio é mesclada com imagens documentais da revolução e outros eventos históricos para acompanhar o fluxo do discurso e raciocínio do personagem conforme ele se deixa levar por memórias de infância, juventude, ponderações suscitadas por livros e por suas andanças pelas ruas. É um trabalho louvável de montagem e de edição de som ao juntar essas imagens e áudios de tempos e espaços diferentes, que não estão intrinsecamente conectados e ainda assim consegue dar unidade a esse material e formar um todo coeso.

O centro das ponderações de Sérgio é pensar na condição de subdesenvolvimento de seu país e da América Latina como um todo. O texto aponta para as condições de fome e miséria dos países latinos e como a fome nesses lugares mata mais que muitas guerras. Buscando entender o motivo desse subdesenvolvimento, o protagonista passa inevitavelmente pela condição de colonizado de Cuba (e dos demais países latino-americanos), primeiro pela Europa e depois pelos EUA. Analisando como a situação de colônia cria uma situação desigual de poder na qual a colônia explora o colonizado e fica com tudo que ele tem de valor enquanto o colonizado vai absorvendo os valores da colônia, se tornando alienado para sua própria realidade enquanto oprimido e também em relação a sua própria cultura, valores e história, tornando mais difícil questionar sua situação de colônia.

Nesse sentido, o texto mira na elite cubana da época, excessivamente tributária de valores estadunidenses, cuja noção de beleza, bom gosto e progresso derivava completamente do olhar do colonizador, alheios à noção de que, para os EUA, Cuba não passava de um playground. É difícil não olhar para esses comentários sobre uma elite com complexo de vira-lata e não pensar na própria elite brasileira contemporânea, que ainda permanece com uma mente colonizada, reiterando sensos-comuns arcaicos sobre a utopia estadunidense sem perceber que para eles não passamos de um povo a ser explorado, como Kleber Mendonça Filho ilustrou muito bem no excelente Bacurau (2019).

O roteiro, no entanto, também faz críticas à própria Revolução Cubana e às promessas não cumpridas do ideal revolucionário. Primeiramente pondera que a libertação do povo cubano não foi exatamente plena, já que deixaram de ser um quintal dos EUA para se tornarem quintal da União Soviética, basicamente trocando o colonialismo de uma potência imperialista que visava difundir sua influência e valores pelo mundo por uma outra com as mesmas características. Do mesmo modo, pondera que a revolução prometeu uma nova ordem social, mas ao invés disso importou velhos modelos de centralização de poder e propaganda ideológica que nada tinham de “novo”.

Boa parte dessa crítica vinha do fato de que membros do ICAIC (o Instituto Cubano da Arte e Indústria Cinematográfica), como o diretor Tomáz Gutiérrez Alea, de fato tinha uma preocupação de repensar a linguagem do audiovisual para que ela servisse ao povo e falasse mais próxima a ele, contribuído para formar um público mais crítico ao invés de meramente reproduzir os mesmos modelos que tratavam a audiência de maneira passiva. Essa preocupação do ICAIC em buscar novas abordagens e formas de linguagens é manifesta na própria estrutura do filme e da maneira como ele tenta se afastar de convenções.

A reflexão produzida por Memórias do Subdesenvolvimento é madura o suficiente para não forçar soluções fáceis para uma situação extremamente complexa, oferecendo uma ponderação consistente sobre os problemas do subdesenvolvimento latino-americano.

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