sexta-feira, 13 de março de 2020

Reflexões Boêmias – Better Call Saul e a noção de "menos é mais"


Better Call Saul mostra como menos pode ser mais


Sempre que escrevo sobre alguma temporada de Better Call Saul menciono o quanto a série (assim como Breaking Bad antes dela) é cuidadosa na construção de seus planos e na condução de seus atores de modo a usá-los para comunicar muita coisa sobre seus personagens, seus estados de ânimo e seus arcos dramáticos, sem que efetivamente precise dizer muita coisa. Isso me veio muito à mente quando assisti o quarto episódio da atual quinta-temporada da série, intitulado Namastê. Como vou analisar muitas cenas de um episódio que foi ao ar recentemente, aviso que o texto pode conter SPOILERS da atual temporada.

O episódio começa no exato ponto em que o anterior terminou, na imagem em close do sorve de que Jimmy (Bob Odenkirk) jogou no chão antes de entrar no carro com Nacho (Michael Mando). No final do terceiro episódio achei curioso a escolha de encerrar com a imagem do sorvete, mas essa decisão se justifica ao longo do quarto episódio. A câmera se aproxima ainda mais do sorvete no chão, dando um zoom microscópico para mostrar as formigas que se aproximam do doce caído, começam com algumas poucas, mas vão ficando cada vez mais numerosas.

A imagem parece dotada de um valor simbólico que fala diretamente sobre o que está acontecendo com Jimmy naquele momento da trama. Cada vez mais imerso no alter ego de Saul Goodman, ele definitivamente mergulha em uma atividade criminosa ao entrar no carro com Nacho. O abandono do sorvete e subsequente infestação de formigas parece estar ali para denotar o processo de corrupção moral de Jimmy conforme ele se coloca em um caminho sem volta para a criminalidade. Afinal de contas Better Call Saul, da mesma forma que Breaking Bad, é um conto sobre a falência moral de um indivíduo que começou com boas intenções e se tornou um criminoso sem escrúpulos.

Mas Lucas, você me pergunta, será que você não está viajando na interpretação? Bem, é sempre possível, mas nesse caso específico a narrativa reforça essa possibilidade de leitura ao fim da reunião de Jimmy com Lalo Salamanca (Tony Dalton). Nacho deixa Jimmy no mesmo ponto em que o pegou e Jimmy olha para o chão e vê o sorvete tomado por formigas. Ou seja, Jimmy voltou ao mesmo ponto onde estava e encontra o sorvete que largou no chão sendo deteriorado por insetos, um reflexo da deterioração moral do personagem.

Não é só através das imagens que o episódio consegue nos dizer muito sobre os personagens usando poucos elementos, a conduta dos atores também nos comunica muita coisa sem que seja necessário um diálogo explícito. A postura defensiva e a fala hesitante de Jimmy na conversa com Lalo deixam claro para o espectador que Jimmy está desconfortável em efetivamente trabalhar para o tráfico. Mais que isso, a maneira como ele alonga a fala na qual tenta dar um valor de seus serviços a Lalo evidencia que o personagem não tem a menor noção do que está fazendo e apenas tenta enrolar o traficante na esperança de sair nessa situação. Afinal, nesse ponto da trama Jimmy ainda não é plenamente o Saul Goodman desprovido de escrúpulos que conhecemos em Breaking Bad. Não há qualquer diálogo explícito que nos diz que Jimmy está desconfortável ou não quer fazer o serviço, mas a conduta do personagem nos diz tudo que precisamos saber.

Do mesmo modo, a maneira com a qual Kim (Rhea Seehorn) perde a paciência com um idoso cuja propriedade um cliente dela quer adquirir diz muito sobre a relação entre a advogada e Jimmy. Conforme ela grita com o idoso sobre a necessidade de seguir regras e honrar a própria palavra, fica claro que ela não está se referindo apenas à teimosia do idoso, mas está descontando nele a frustração que sente com Jimmy e o fato de Jimmy estar cada vez mais afrouxando seus limites morais.

O incômodo de Kim com a conduta de Jimmy era visível no rosto dela desde a cena final da quarta temporada, no entanto a personagem nunca transmitiu seus pensamentos ao namorado. A explosão dela diante do homem idoso explicita ao público o quanto as ações de Jimmy a estão tirando do sério e o quanto ela vinha contendo seu incômodo durante todo esse tempo.

Voltando à construção das imagens e situações, a cena final é outro exemplo de como um evento aparentemente banal pode dizer muito sobre os personagens. Kim chega em casa e encontra Jimmy bebendo na varanda. Jimmy se sente, de alguma maneira, incomodado por ter se tornado um empregado dos Salamanca, enquanto que Kim está frustrada por ter tido que acabar com a vida de alguém por causa de um cliente. Ambos ultrapassaram seus limites morais naquele dia e ambos estão mal por isso, mas eles não se falam.

Jimmy dá uma cerveja para Kim e ela arremessa a garrafa na rua. Jimmy então arremessa sua própria garrafa e os dois pegam o restante das cervejas e começam a jogá-las da varanda. É perceptível que a ação é uma maneira de ambos extravasarem suas respectivas frustrações sem, no entanto, falar sobre elas com o outro e isso diz muito sobre a relação de Kim e Jimmy naquele momento.

Por pior que estejam se sentindo, eles não querem dizer um para o outro como se sentem ou o que os incomoda, preferindo encontrar uma maneira alternativa de botarem os sentimentos para fora enquanto adiam uma inevitável conversa sobre o que realmente se passa na cabeça de cada um deles. É evidente, a esse ponto, que eles não têm uma relação no qual sentem abertura um com o outro, buscando maneiras de prolongar o silêncio que há entre eles. Um silêncio que provavelmente irá se tornar insuportável em algum momento. É por elementos como esses, nos quais a série nos comunica muito sobre os personagens e seus sentimentos sem precisar de diálogos que fiquem explicando o que está se passando com eles.



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