quinta-feira, 9 de abril de 2020

Crítica – Você Não Estava Aqui


Resenha Crítica – Você Não Estava Aqui


Review – Você Não Estava Aqui
Quem conhece a obra do diretor britânico Ken Loach sabe que ele costuma mostrar as agruras da classe média trabalhadora, os problemas sociais de seu país e as consequências da falta de um Estado voltado para o bem-estar social. Neste Você Não Estava Aqui, Loach trata da precarização do trabalho e como a ideia de trabalhar como “empreendedor individual” para uma empresa ao invés de como funcionário vende uma ideia de liberdade e empreendedorismo que não se verifica na prática, resultando em ainda mais exploração do trabalhador.

A trama acompanha Ricky (Kris Hitchen), que começa a trabalhar em uma empresa de entregas que presta serviço para corporações de comércio eletrônico como Amazon e outras. Ricky, no entanto, não é funcionário, é um empreendedor contratado que recebe por entrega feita e precisa arcar sozinhos com todos os custos de sua função. O carro que faz entregas não é da empresa, mas dele, a manutenção do veículo e todo resto é de responsabilidade dele. De início tudo isso é apresentado ao protagonista como algo libertador, que vai dar a ele a possibilidade de ter um negócio próprio, trabalhar o número de horas que quiser. Aos poucos, no entanto, a realidade desse trabalho vai se mostrando cada vez mais cruel.

Conforme trabalha e começa a enfrentar problemas o protagonista descobre que a empresa não tem qualquer compromisso com ele caso a van seja danificada, Ricky adoeça ou fique impossibilitado de trabalhar. Apesar de não ter qualquer responsabilidade, a empresa tem todo direito de cobrar pontualidade, frequência e bom serviço sob pena de pesadas multas e descontos no pagamento caso Ricky descumpra qualquer norma. A empresa tem todos os direitos, Ricky tem apenas deveres a cumprir. A prometida liberdade se torna quase uma escravidão.

Os impactos disso são sentidos também na família do personagem. Abbie (Debbie Honeywood), a esposa de Ricky, precisa vender o carro para que ele compre a van, o que significa que ela precisa gastar mais tempo indo trabalhar esperando ônibus. Abbie trabalha para um serviço de cuidadores de idosos e, tal como Ricky, não é contratada, recebendo por hora de serviço prestado, o que significa que ela também precisa trabalhar longas horas. Raramente em casa, a relação deles se deteriora, assim como o relacionamento com os filhos, que passam a reclamar da ausência deles.

As histórias de Ricky e Abbie também mostram como esse discurso de que o trabalhador escolherá as próprias horas de trabalho na verdade quer dizer que eles estarão sempre disponíveis a trabalhar, podendo ser requisitados a qualquer hora. Muitas vezes sem serem capazes de dizer não, como na cena em que Abbie larga o jantar porque precisa atender uma cliente.

O texto também ilustra como a automação do trabalho, de certa forma nos tornou refém das máquinas. Em uma conversa com o patrão, Ricky ouve o chefe dizer que a empresa funciona porque ele mantem “a máquina feliz”, se referindo ao pequeno dispositivo que cada entregador carrega, que separa os pacotes, calcula as rotas e determina o tempo que cada entrega deve durar e as metas diárias de entregas.

É praticamente uma versão digital da ideia de banalidade do mal proposta por Hannah Arendt, ninguém tem culpa da exploração do trabalhador porque ninguém efetivamente determina nada, só pessoas cumprindo ordens de pessoas cumprindo ordens que obedecem aos desígnios de um algoritmo imaterial que reduz seres humanos a números.

A falta de liberdade de Ricky se torna evidente quando ele não consegue largar o serviço para cuidar de emergências pessoais envolvendo o filho, sendo forçado a continuar trabalhando ou arcar com uma multa. Do mesmo modo, a desumanidade de todo o serviço fica clara na sequência em que o protagonista é roubado, espancado e ao ligar para o chefe enquanto espera ser atendido em um hospital só ouve ameaças de mais multas e descontos no pagamento sem demonstrar qualquer preocupação com o funcionário, removendo sua dignidade e sua humanidade, tornando-o uma mera ferramenta.

O desfecho, inclusive, deixa um gosto amargo na boca ao trazer a constatação de que infelizmente não há muita saída, que para sobreviver o trabalhador acaba ficando refém dessas estruturas que o exploram e destroem sua saúde física e mental. É bem simbólico, inclusive, que Ricky deixe um bilhete para sua esposa usando os adesivos de destinatário ausente de seu trabalho. É como se, mesmo que inconscientemente, o personagem reconhecesse que não há mais nada em sua existência além do próprio trabalho e que mesmo uma comunicação pessoal com a esposa será mediada por esses dispositivos e linguagens do seu ofício.

Você Não Estava Aqui é um impactante e desolador retrato das relações de trabalho contemporâneas que mostra as duras consequências de uma estrutura trabalhista cada vez mais precarizada.

Nota: 10/10

Trailer

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