quarta-feira, 27 de maio de 2020

Rapsódias Revisitadas – O Homem Urso



Análise crítica – O Homem Urso

Review – O Homem UrsoLançado em 2005, o documentário O Homem Urso chama atenção não só pela história de Timothy Treadwell, que durante 13 anos seguidos passou o verão acampando em uma reserva de ursos pardos para viver entre os animais, mas pelo modo como o diretor Werner Herzog conta a história de Treadwell. Seria fácil, considerando as centenas de horas de material filmado pelo próprio Treadwell que Herzog teve acesso, pintar o sujeito simplesmente como um doido varrido caricato, na linha de alguma figura como o Joe Exotic de A Máfia dos Tigres (2020).

Seria fácil também Herzog guardar a informação da morte brutal de Treadwell e da companheira nas garras dos ursos que tentava proteger para o final de modo a criar uma reviravolta chocante. Ao invés disso, o diretor traz essa informação já no início, se preocupando mais em tentar entender quem era Treadwell e quais foram suas motivações para se arriscar ao ponto de eventualmente morrer. O olhar de Herzog é de empatia e respeito pelo seu personagem, no entanto, a linguagem direta e seca do diretor jamais romantiza o ator/ativista, deixando claras as suas falhas e também a ineficiência da militância dele pelos ursos.


Durante 13 anos seguidos, Thimothy Treadwell passou seus verões em uma reserva florestal no estado do Alasca, vivendo em meio aos ursos pardos que habitavam o lugar e se proclamando defensor desses animais, até que ele e a companheira foram mortos e devorados por ursos durante uma dessas estadias. O documentário é estruturado alternando entre imagens filmadas pelo próprio Treadwell em seus últimos 5 anos acampando no local e imagens feitas pelo próprio Herzog entrevistando pessoas que conheceram Treadwell, amigos, familiares e até outros ativistas.

As narrações de Herzog e as imagens captadas por Treadwell mostram o fascínio que a natureza desperta, o esplendor das paisagens e a catarse que pode ser extraída da aproximação do ser humano com a natureza. Herzog inclusive elogia algumas tomadas feitas por Treadwell que captam a espontaneidade dos animais em seu habitat, dizendo que equipes profissionais nunca conseguiram aquelas filmagens por conta das muitas regras de segurança que essas equipes precisam seguir.

Por outro lado, Herzog mostra que a visão romantizada que Treadwell tinha da natureza e dos animais como esse lugar de paz e harmonia contribuiu para que ele se julgasse mais seguro do que realmente estava. O diretor ilustra esse ponto de vista com imagens do próprio Treadwell estarrecido ao ver animais devorando uns aos outros ou um predador capturando uma presa, como se isso fosse uma conduta aberrante, sendo que é o normal dessas criaturas. Como Herzog lembra, a vida selvagem é um espaço bruto, de constante morte e que é indiferente a existência ou demandas do ser humano.

Mais que isso, Herzog analisa como o discurso de Treadwell em proteger os ursos tinha pouquíssimo valor prático. Entrevistas com biólogos, guardas florestais e membros da população nativa explicam como aquele espaço já é uma reserva de acesso restrito, amplamente vigiada e no qual os índices de caça ilegal são muito baixos. Um nativo da região inclusive explica como as ações de Treadwell eram prejudiciais ao ursos, acostumando os animais a confiar em humanos e a ficar próximos, quando os ursos deveriam temer e hostilizar humanos para a própria segurança.

O diretor ainda tenta entender o que movia Treadwell a esse extremo, uma análise que deve ter sido o principal motor para Herzog se aproximar dessa história. A filmografia dele, seja em ficção ou documentário, sempre mira esse tipo de personagem, sujeitos em situações limite, passando por uma experiência extrema que a maioria das pessoas nunca viveria. Vemos isso nos pesquisadores no Polo Sul em Encontros no Fim do Mundo (2007) ou nos condenados no corredor da morte em Ao Abismo (2011) e, claro, em Treadwell aqui.

O documentário tenta reconstituir a vida do ativista, narrando como os problemas com drogas o afastaram de uma carreira no esporte, as tentativas fracassadas em virar ator e o agravamento dos problemas com drogas que só melhoraram, segundo vídeos do próprio Treadwell, quando ele passou a viver com os ursos. Nesse sentido, Herzog nos mostra que o ativismo era uma mera desculpa para que Treadwell desse a si mesmo um propósito na vida, que construísse na própria cabeça uma narrativa em que ele era o herói, lutando contra forças cada vez mais sombrias (e as imagens de arquivo mostram o crescimento de sua paranoia) de modo a preencher o vazio existencial que antes tentava preencher com drogas.

A história de Treadwell é, em essência, uma história sobre alguém desesperado para encontrar sentido na própria natureza, de entrar em comunhão com ela e os animais. Uma comunhão fadada ao fracasso pelo fato dele não entender as limitações do ser humano em relação à implacabilidade da natureza. Herzog apresenta esse conflito como uma espécie de paradoxo. O ser humano deseja se aproximar da natureza e viver em comunhão com ela, mas nossa consciência e humanismo nos afasta dos aspectos mais brutais da natureza ao ponto em que precisamos nos afastar dela e deixá-la em paz.

O Homem Urso é, portanto, um cuidadoso exame sobre a relação entre a humanidade e a natureza, usando a experiência extrema de Timothy Treadwell para fazer uma sóbria ponderação sobre os limites dessa relação.

Trailer

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