Lançado em 2005, o documentário O Homem Urso chama atenção não só pela
história de Timothy Treadwell, que durante 13 anos seguidos passou o verão
acampando em uma reserva de ursos pardos para viver entre os animais, mas pelo
modo como o diretor Werner Herzog conta a história de Treadwell. Seria fácil,
considerando as centenas de horas de material filmado pelo próprio Treadwell
que Herzog teve acesso, pintar o sujeito simplesmente como um doido varrido
caricato, na linha de alguma figura como o Joe Exotic de A Máfia dos Tigres (2020).
Seria fácil também Herzog guardar
a informação da morte brutal de Treadwell e da companheira nas garras dos ursos
que tentava proteger para o final de modo a criar uma reviravolta chocante. Ao
invés disso, o diretor traz essa informação já no início, se preocupando mais
em tentar entender quem era Treadwell e quais foram suas motivações para se
arriscar ao ponto de eventualmente morrer. O olhar de Herzog é de empatia e
respeito pelo seu personagem, no entanto, a linguagem direta e seca do diretor
jamais romantiza o ator/ativista, deixando claras as suas falhas e também a ineficiência
da militância dele pelos ursos.
Durante 13 anos seguidos,
Thimothy Treadwell passou seus verões em uma reserva florestal no estado do
Alasca, vivendo em meio aos ursos pardos que habitavam o lugar e se proclamando
defensor desses animais, até que ele e a companheira foram mortos e devorados
por ursos durante uma dessas estadias. O documentário é estruturado alternando
entre imagens filmadas pelo próprio Treadwell em seus últimos 5 anos acampando
no local e imagens feitas pelo próprio Herzog entrevistando pessoas que
conheceram Treadwell, amigos, familiares e até outros ativistas.
As narrações de Herzog e as
imagens captadas por Treadwell mostram o fascínio que a natureza desperta, o
esplendor das paisagens e a catarse que pode ser extraída da aproximação do ser
humano com a natureza. Herzog inclusive elogia algumas tomadas feitas por
Treadwell que captam a espontaneidade dos animais em seu habitat, dizendo que equipes profissionais nunca conseguiram
aquelas filmagens por conta das muitas regras de segurança que essas equipes
precisam seguir.
Por outro lado, Herzog mostra que
a visão romantizada que Treadwell tinha da natureza e dos animais como esse
lugar de paz e harmonia contribuiu para que ele se julgasse mais seguro do que
realmente estava. O diretor ilustra esse ponto de vista com imagens do próprio
Treadwell estarrecido ao ver animais devorando uns aos outros ou um predador
capturando uma presa, como se isso fosse uma conduta aberrante, sendo que é o
normal dessas criaturas. Como Herzog lembra, a vida selvagem é um espaço bruto,
de constante morte e que é indiferente a existência ou demandas do ser humano.
Mais que isso, Herzog analisa
como o discurso de Treadwell em proteger os ursos tinha pouquíssimo valor
prático. Entrevistas com biólogos, guardas florestais e membros da população
nativa explicam como aquele espaço já é uma reserva de acesso restrito,
amplamente vigiada e no qual os índices de caça ilegal são muito baixos. Um
nativo da região inclusive explica como as ações de Treadwell eram prejudiciais
ao ursos, acostumando os animais a confiar em humanos e a ficar próximos,
quando os ursos deveriam temer e hostilizar humanos para a própria segurança.
O diretor ainda tenta entender o
que movia Treadwell a esse extremo, uma análise que deve ter sido o principal
motor para Herzog se aproximar dessa história. A filmografia dele, seja em
ficção ou documentário, sempre mira esse tipo de personagem, sujeitos em
situações limite, passando por uma experiência extrema que a maioria das
pessoas nunca viveria. Vemos isso nos pesquisadores no Polo Sul em Encontros no Fim do Mundo (2007) ou nos
condenados no corredor da morte em Ao Abismo (2011) e, claro, em Treadwell aqui.
O documentário tenta reconstituir
a vida do ativista, narrando como os problemas com drogas o afastaram de uma
carreira no esporte, as tentativas fracassadas em virar ator e o agravamento
dos problemas com drogas que só melhoraram, segundo vídeos do próprio
Treadwell, quando ele passou a viver com os ursos. Nesse sentido, Herzog nos mostra
que o ativismo era uma mera desculpa para que Treadwell desse a si mesmo um
propósito na vida, que construísse na própria cabeça uma narrativa em que ele
era o herói, lutando contra forças cada vez mais sombrias (e as imagens de
arquivo mostram o crescimento de sua paranoia) de modo a preencher o vazio
existencial que antes tentava preencher com drogas.
A história de Treadwell é, em
essência, uma história sobre alguém desesperado para encontrar sentido na
própria natureza, de entrar em comunhão com ela e os animais. Uma comunhão
fadada ao fracasso pelo fato dele não entender as limitações do ser humano em
relação à implacabilidade da natureza. Herzog apresenta esse conflito como uma
espécie de paradoxo. O ser humano deseja se aproximar da natureza e viver em
comunhão com ela, mas nossa consciência e humanismo nos afasta dos aspectos
mais brutais da natureza ao ponto em que precisamos nos afastar dela e deixá-la
em paz.
O Homem Urso é, portanto, um cuidadoso exame sobre a relação entre
a humanidade e a natureza, usando a experiência extrema de Timothy Treadwell
para fazer uma sóbria ponderação sobre os limites dessa relação.
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