Spike Lee provavelmente não imaginou
que Destacamento Blood, seu filme mais recente, seria lançado bem
em meio a uma série de protestos sobre racismo e violência estatal contra a
população negra dos Estados Unidos. Chegando via Netflix durante um momento
político e um contexto de recepção que torna seus temas ainda mais relevantes,
é difícil negar a força do trabalho de Lee aqui, ainda que tenha suas falhas.
Na trama, um grupamento de soldados
negros que combateu junto na guerra do Vietnã retorna ao país nos dias de hoje
para recuperar o corpo de um companheiro de farda que morreu em combate na
selva. Eles também tem um segundo motivo: recuperar uma mala de ouro que
resgataram de um avião de transporte da CIA e enterraram na floresta.
A narrativa, em essência, trata sobre
duas guerras ou duas lutas que, para os personagens, nunca acabaram. Eles
continuam vivendo o Vietnã, carregando em si todos os traumas e arrependimentos
da guerra, assim como continuam vivendo a luta contra o racismo, por terem sido
jogados em uma guerra para lutar, morrer e defender um país que os trata como
cidadãos de segunda classe.
O início do filme ilustra bem como a
Guerra do Vietnã, de certa forma, nunca acabou e que as consequências dela
continuam a ser sentidas em ambos os lados. Os personagens são constantemente
abordados por mendigos, pessoas desmembradas, que mostram como os habitantes do
Vietnã ainda vivem com as consequências do conflito, algo também visto nos
campos minados, um lembrete constante da persistência da guerra. Entre os
protagonistas, essas consequências não se manifestam apenas em seus traumas, mas
também de maneiras bem palpáveis, como Otis (Clarke Peters), que descobre que
tem uma filha no Vietnã.
Lee, como de costume em sua
filmografia, mistura esses eventos ficcionais com imagens e fotos de eventos e
pessoas reais, mostrando como o registro histórico apagou ou menosprezou a
participação da população negra na história dos Estados Unidos. O diretor
comenta desde o registro histórico formal ao modo como o cinema de ficção, em
filmes como os Rambo ou os Braddock criaram
uma visão mítica e romantizada na qual o homem branco salvou e resolveu sozinho
os problemas no Vietnã.
Essa tentativa de reconstruir e
reconfigurar o registro norteia boa parte das escolhas estéticas de Lee e o
modo como ele se apropria de elementos de outros filmes sobre o tema. O exemplo
mais notável talvez seja como ele dialoga com Apocalypse Now (1979),
talvez o filme mais seminal sobre o Vietnã. Aqui, há uma cena em que o grupo
navega em um rio ao som de Cavalgada das Valquírias de Richard
Wagner e é difícil não pensar que Lee concebeu esse momento com o filme de
Coppola em mente.
Se lá a música operística de Wagner
conferia grandiosidade ao ataque militar estadunidense e ajudava a construir a
imagem do Vietnã como um lugar selvagem desumano e enlouquecedor. Aqui, no
filme de Lee essa música opera em disjunção com a imagem dos personagens
navegando em um rio cheio de vendedores e pedintes, como se quisesse
desconstruir o senso de grandiosidade do filme de Apocalypse Now.
Outra opção estética
que diz muito sobre a mensagem que Lee quer passar a respeito do conflito no
Vietnã é a escolha de não trocar o elenco principal nos flashbacks da guerra, mantendo os mesmos atores
tanto nas versões contemporâneas (e idosas) dos personagens quanto nas versões
jovens, inclusive fazendo o mínimo possível para tentar rejuvenescer os atores
nesses flashbacks. A escolha parece sinalizar o quanto esses
sujeitos permaneceram os mesmos desde a guerra, como se carregassem as mesmas
marcas em si desde aquele período. Para que essas transições não fiquem
confusas, Lee escolhe por mudar a razão de aspecto da imagem, estreitando as
imagens nos flashbacks e dá a elas um efeito de
granulação como se fosse uma película envelhecida, tudo isso para conotar
que estamos diante de imagens mais “antigas”.
Os flashbacks também
trazem questões sobre a participação da população negra na Guerra do Vietnã,
afinal aquele era o momento em que o movimento negro ganhava força no país,
assim como o debate contra a segregação e o racismo. As conversas dos
protagonistas com o colega Norman (Chadwick Boseman) ajudam a ilustrar como a
comunidade negra se sentia naquele momento. Ao mesmo tempo, imagens e áudios de
rádios vietnamitas que tentavam convencer que os negros estavam sendo
descartados e usados pelos EUA são mostrados para denotar como esses dois povos se aproximam na sua condição de
colonizados e oprimidos por uma potência imperialista.
A trama, no entanto, vai perdendo força
conforme o filme se concentra na questão do resgate do ouro e se transforma em
uma narrativa bem típica sobre “febre do ouro”, conforme a ganância de alguns
personagens começa a falar mais alto e conflitos emergem entre eles. Tudo bem
que em um nível subtextual certas ideias continuam operando, como a noção de
que um conflito movido por interesses pessoais ao invés de interesses coletivos
está fadado ao fracasso e à tragédia, mas, ao mesmo tempo, o confronto com os
bandidos vietnamitas de certa forma cai na mesma tentativa de “resolver” o
Vietnã que o texto anteriormente critica sobre o cinema.
Além disso, o filme se perde em
conflitos, subtramas e ideias que tem dificuldade em se conectar com os temas
principais do texto. O conflito de Paul (Delroy Lindo) com o filho, David
(Jonathan Majors), toma uma parte considerável da trama, mas pouco se relaciona
com os temas centrais da guerra e do racismo. Do mesmo modo, o grupo de
ativistas liderados pela francesa Hedy (Mélanie Thierry) acaba não tendo muita
repercussão na trama.
A ideia de Paul ter se tornado um
reacionário apoiador de Donald Trump também não é plenamente construída. A
impressão é que o texto tenta conectar as frustrações e traumas da guerra com a
postura política do personagem, mas o roteiro não consegue conectar essas
ideias de maneira convincente, principalmente quando os demais companheiros de
Paul não partilham essa visão apesar de terem passado por experiências
similares. Talvez se o filme desse mais espaço aos outros personagens, que não
são muito desenvolvidos, isso poderia funcionar melhor, mas do jeito que está
esses elementos não se juntam de uma maneira coesa.
Isso, no entanto, não tira o impacto da
interpretação de Delroy Lindo, muitas vezes sozinho em cena e falando
diretamente para a câmera em planos longos. O ator consegue trazer o senso de
frustração e raiva intensa de Paul, cansado de ser maltratado, passado para
trás e subestimado ao longo de sua vida, trazendo força ao personagem mesmo
quando o texto nem sempre constrói bem certas motivações.
Ainda que se perca no excesso de
personagens e tramas, Destacamento Blood mesmo assim consegue
trazer reflexões importantes e relevantes sobre guerra e racismo.
Nota: 7/10
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