segunda-feira, 15 de junho de 2020

Crítica – Destacamento Blood


Análise Crítica – Destacamento Blood

Resenha Crítica – Destacamento Blood
Spike Lee provavelmente não imaginou que Destacamento Blood, seu filme mais recente, seria lançado bem em meio a uma série de protestos sobre racismo e violência estatal contra a população negra dos Estados Unidos. Chegando via Netflix durante um momento político e um contexto de recepção que torna seus temas ainda mais relevantes, é difícil negar a força do trabalho de Lee aqui, ainda que tenha suas falhas.

Na trama, um grupamento de soldados negros que combateu junto na guerra do Vietnã retorna ao país nos dias de hoje para recuperar o corpo de um companheiro de farda que morreu em combate na selva. Eles também tem um segundo motivo: recuperar uma mala de ouro que resgataram de um avião de transporte da CIA e enterraram na floresta.

A narrativa, em essência, trata sobre duas guerras ou duas lutas que, para os personagens, nunca acabaram. Eles continuam vivendo o Vietnã, carregando em si todos os traumas e arrependimentos da guerra, assim como continuam vivendo a luta contra o racismo, por terem sido jogados em uma guerra para lutar, morrer e defender um país que os trata como cidadãos de segunda classe.


O início do filme ilustra bem como a Guerra do Vietnã, de certa forma, nunca acabou e que as consequências dela continuam a ser sentidas em ambos os lados. Os personagens são constantemente abordados por mendigos, pessoas desmembradas, que mostram como os habitantes do Vietnã ainda vivem com as consequências do conflito, algo também visto nos campos minados, um lembrete constante da persistência da guerra. Entre os protagonistas, essas consequências não se manifestam apenas em seus traumas, mas também de maneiras bem palpáveis, como Otis (Clarke Peters), que descobre que tem uma filha no Vietnã.

Lee, como de costume em sua filmografia, mistura esses eventos ficcionais com imagens e fotos de eventos e pessoas reais, mostrando como o registro histórico apagou ou menosprezou a participação da população negra na história dos Estados Unidos. O diretor comenta desde o registro histórico formal ao modo como o cinema de ficção, em filmes como os Rambo ou os Braddock criaram uma visão mítica e romantizada na qual o homem branco salvou e resolveu sozinho os problemas no Vietnã.

Essa tentativa de reconstruir e reconfigurar o registro norteia boa parte das escolhas estéticas de Lee e o modo como ele se apropria de elementos de outros filmes sobre o tema. O exemplo mais notável talvez seja como ele dialoga com Apocalypse Now (1979), talvez o filme mais seminal sobre o Vietnã. Aqui, há uma cena em que o grupo navega em um rio ao som de Cavalgada das Valquírias de Richard Wagner e é difícil não pensar que Lee concebeu esse momento com o filme de Coppola em mente.

Se lá a música operística de Wagner conferia grandiosidade ao ataque militar estadunidense e ajudava a construir a imagem do Vietnã como um lugar selvagem desumano e enlouquecedor. Aqui, no filme de Lee essa música opera em disjunção com a imagem dos personagens navegando em um rio cheio de vendedores e pedintes, como se quisesse desconstruir o senso de grandiosidade do filme de Apocalypse Now.

Outra opção estética que diz muito sobre a mensagem que Lee quer passar a respeito do conflito no Vietnã é a escolha de não trocar o elenco principal nos flashbacks da guerra, mantendo os mesmos atores tanto nas versões contemporâneas (e idosas) dos personagens quanto nas versões jovens, inclusive fazendo o mínimo possível para tentar rejuvenescer os atores nesses flashbacks. A escolha parece sinalizar o quanto esses sujeitos permaneceram os mesmos desde a guerra, como se carregassem as mesmas marcas em si desde aquele período. Para que essas transições não fiquem confusas, Lee escolhe por mudar a razão de aspecto da imagem, estreitando as imagens nos flashbacks e dá a elas um efeito de granulação como se fosse uma película envelhecida, tudo isso para conotar que estamos diante de imagens mais “antigas”.

Os flashbacks também trazem questões sobre a participação da população negra na Guerra do Vietnã, afinal aquele era o momento em que o movimento negro ganhava força no país, assim como o debate contra a segregação e o racismo. As conversas dos protagonistas com o colega Norman (Chadwick Boseman) ajudam a ilustrar como a comunidade negra se sentia naquele momento. Ao mesmo tempo, imagens e áudios de rádios vietnamitas que tentavam convencer que os negros estavam sendo descartados e usados pelos EUA são mostrados para denotar como esses dois povos se aproximam na sua condição de colonizados e oprimidos por uma potência imperialista.

A trama, no entanto, vai perdendo força conforme o filme se concentra na questão do resgate do ouro e se transforma em uma narrativa bem típica sobre “febre do ouro”, conforme a ganância de alguns personagens começa a falar mais alto e conflitos emergem entre eles. Tudo bem que em um nível subtextual certas ideias continuam operando, como a noção de que um conflito movido por interesses pessoais ao invés de interesses coletivos está fadado ao fracasso e à tragédia, mas, ao mesmo tempo, o confronto com os bandidos vietnamitas de certa forma cai na mesma tentativa de “resolver” o Vietnã que o texto anteriormente critica sobre o cinema.

Além disso, o filme se perde em conflitos, subtramas e ideias que tem dificuldade em se conectar com os temas principais do texto. O conflito de Paul (Delroy Lindo) com o filho, David (Jonathan Majors), toma uma parte considerável da trama, mas pouco se relaciona com os temas centrais da guerra e do racismo. Do mesmo modo, o grupo de ativistas liderados pela francesa Hedy (Mélanie Thierry) acaba não tendo muita repercussão na trama.

A ideia de Paul ter se tornado um reacionário apoiador de Donald Trump também não é plenamente construída. A impressão é que o texto tenta conectar as frustrações e traumas da guerra com a postura política do personagem, mas o roteiro não consegue conectar essas ideias de maneira convincente, principalmente quando os demais companheiros de Paul não partilham essa visão apesar de terem passado por experiências similares. Talvez se o filme desse mais espaço aos outros personagens, que não são muito desenvolvidos, isso poderia funcionar melhor, mas do jeito que está esses elementos não se juntam de uma maneira coesa.

Isso, no entanto, não tira o impacto da interpretação de Delroy Lindo, muitas vezes sozinho em cena e falando diretamente para a câmera em planos longos. O ator consegue trazer o senso de frustração e raiva intensa de Paul, cansado de ser maltratado, passado para trás e subestimado ao longo de sua vida, trazendo força ao personagem mesmo quando o texto nem sempre constrói bem certas motivações.

Ainda que se perca no excesso de personagens e tramas, Destacamento Blood mesmo assim consegue trazer reflexões importantes e relevantes sobre guerra e racismo.

Nota: 7/10




Trailer

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