Eu não sabia exatamente o que
esperar de Kidding. Fui assistir por
conta do elenco encabeçado por Jim Carrey e por algumas cenas que viralizaram
na internet por conta de sua inventividade visual. O que encontrei foi uma
excelente mescla de drama e comédia que examina as consequências do trauma na
psique humana.
Na trama, Jeff Picles (Jim
Carrey) é um famoso apresentador infantil que há anos conduz um programa
educativo televisivo com marionetes em uma emissora de acesso público. Jeff
fica devastado com a morte de um de seus filhos em um acidente de carro e tem
dificuldade em lidar com o próprio luto, principalmente porque sua esposa, Jill
(Judy Greer), se separa dele e Jeff vê tudo desmoronar ao seu redor. Ao invés
de processar todos esses sentimentos, Jeff os engole a seco e tenta manter a
personalidade otimista e gentil de seu personagem televisivo, o Sr. Picles, o
que obviamente só agrava seu estado mental.
Poucos atores dariam conta de um
personagem como Jeff da maneira que Jim Carrey faz aqui. O ator dá conta das
múltiplas facetas do apresentador de maneira bastante natural, transitando
entre a personalidade lúdica e brincalhona do Sr. Picles quanto seu lado mais
depressivo e autodestrutivo. Jeff, no entanto, não é o único de sua família com
problemas emocionais. Seu pai, Seb (Frank Langella), e sua irmã, Deirdre
(Catherine Keener) também tem seus próprios problemas emocionais.
Deirdre também vê seu casamento
desmoronando ao descobrir que o marido é gay e mantém um caso com o professor
de piano da filha. Ela também lida com o fato de Seb sempre ter priorizado Jeff
e se sente à sombra do irmão. Já Seb se sente emocionalmente alienado da
família, uma consequência direta de suas próprias ações como pai, sempre
resguardando o afeto concedido aos filhos e tratando-os com dureza.
No caso de Jeff, muito do
conflito emocional do personagem vem do fato de que o apresentador conectou sua
personalidade com a de seu alter-ego televisivo, fundindo os dois em um só
indivíduo. A partir do momento que os sentimentos dele como Jeff entram em
dissonância com a conduta alegre e “família”, a psique de Jeff se torna
fraturada. Ele tenta forçosamente manter seu personagem o tempo todo enquanto
seus problemas emocionais cozinham dentro de si até eventualmente explodirem.
As dificuldades de lidar com essa
persona pública “perfeita” não é um
problema que incide apenas em Jeff, mas nas pessoas ao redor. A imagem de Jeff projeta
uma ampla sombra sobre Jill e Will (Cole Allen), seu outro filho, que nunca se
sentem à altura de estar ao lado do perfeito Sr. Picles. Apesar de mostrar os
problemas da vida pessoal de Jeff, a trama também mostra como o programa dele
de fato foi uma influência positiva na vida de várias pessoas, como a gentileza
de Jeff ajudou muitos a melhorarem.
O roteiro também é hábil em nos
mostrar as causas e consequências das ações dos personagens, nos fazendo
entender as razões deles agirem de uma determinada maneira ou como ações de
outros os afetaram. Compreendemos, por exemplo, que a conduta extremamente
mansa de Jeff vem justamente do medo que ele tem de extravasar a própria raiva
como fez durante a infância, incentivado pelo pai a sempre ser agressivo. Nesse
sentido, a calma e gentileza de Jeff são uma tentativa extrema de corrigir seus
problemas do passado. O desfecho da temporada, que acaba com um evento
impactante, é justamente a consequência explosiva da explosão de todos os
sentimentos que Jeff não conseguiu conter dentro de si.
Além de falar sobre os problemas
pessoais de seus personagens, a série também trata de nossa relação com os
meios de massa e com o consumo. Seb, que agencia a carreira de Jeff, não o
deixa fazer um programa sobre morte e luto porque isso afastaria as crianças e
diminuiria a receita de brinquedos vendidos, já que luto não é algo que se
possa transformar em um produto a ser comercializado para crianças. Ou seja,
para Seb e a emissora, a conversa sobre educação sentimental das crianças só é
importante e tem valor a partir do momento que pode ser explorado
financeiramente como produto e qualquer coisa que não pode ser transformada em
produto não interessa, independente de seu valor artístico, moral ou ético.
Do mesmo modo a figura do Sr.
Picles revela como muitos pais simplesmente delegam à televisão a educação dos
filhos, não se importando em ouvi-los ou em atender suas necessidades afetivas,
achando que basta dar aos filhos bens materiais e deixar que a televisão os
diga o que fazer o tempo todo. Os arcos de Jeff, Deirdre e dos filhos deles
mostram também as consequências dessa alienação afetiva dos pais. Isso fica
evidente no último episódio, quando Jeff se propõe a ouvir as crianças e
centenas delas fazem fila na porta da emissora para terem a chance de serem
ouvidas pelo apresentador.
A primeira temporada de Kidding é um cuidadoso estudo na psique
fraturada de seu protagonista, trazendo drama e comédia para discutir trauma,
comunicação de massa e relações parentais.
Nota: 9/10
Trailer
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