quinta-feira, 25 de junho de 2020

Rapsódias Revisitadas – Um Dia De Fúria

Resenha – Um Dia De Fúria

Análise Crítica - Um Dia de Fúria
Apesar de ser mais lembrado pelos dois filmes do Batman que dirigiu, o diretor Joel Schumacher também conduziu muitos filmes marcantes nas décadas de 80 e 90, como O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas (1985), Os Garotos Perdidos (1987) e Um Dia de Fúria (1993), o filme que revisitaremos hoje nessa coluna.

A trama segue um trabalhador (Michael Douglas) que abandona o carro em um engarrafamento e decide ir andando para casa, já que é aniversário da filha. Ao longo do caminho, ele não encontra nada além de hostilidade e responde a isso de maneira agressiva, criando ainda mais violência e espalhando o caos por onde passa.

A narrativa opera em vários níveis de crítica à sociedade e cultura dos Estados Unidos e como o resultado de um grupo social com essa estrutura e valores é uma receita para o desastre. A primeira coisa que chama atenção é o individualismo. Praticamente todas as pessoas com as quais o protagonista se encontra veem apenas o próprio lado e tentam se impor diante do protagonista. O que resulta nessas interações não é uma conversa, uma troca, mas um duelo em que um tenta forçar o outro a fazer o que quer e no qual o mais agressivo sai vitorioso. Uma sociedade na qual as pessoas só se preocupam consigo mesmas.

Isso, no entanto, não significa exatamente que o protagonista é uma vítima. O texto deixa claro que antes desse dia tenso o protagonista já era um sujeito desequilibrado e com propensão a violência. De certa forma, tal como Coringa (2019), não é a história de um homem bom destruído por um sistema econômico e social cruel, mas de um homem problemático que se torna ainda pior por causa desse sistema.

Assim, por mais que em muitas instâncias a raiva do protagonista seja compreensível e fruto de problemas sociais legítimos, como na cena do fast food ou sua frustração por ter perdido o emprego e estar falido, ele não é um herói, um defensor do povo ou qualquer coisa assim. Ele é um sujeito violento que reage agressivamente quando as coisas não saem como ele quer e Michael Douglas é ótimo em nos convencer da raiva fervilhante do personagem. A fotografia, pendendo a tons quentes e saturados, focando bastante em matizes de laranja, ajuda a transmitir a sensação de um calor causticante capaz de tirar alguém do sério.

O protagonista é o retrato de uma classe média branca educada para crer no “sonho americano”, que bastaria se esforçar e trabalhar o suficiente que tudo seria seu, que as oportunidades eram iguais e tudo depende de mérito. Ao perceber que embarcou em uma mentira, que o “sonho” não é como ele pensou, que a sociedade é desigual e injusta, o personagem de Michael Douglas passa a culpar aqueles ao seu redor por seus problemas. Os imigrantes, os pobres, o crime, sem perceber que tudo isso é provocado pela mesma desigualdade que o colocou para baixo.

Há também um comentário sobre masculinidade e noção tóxica de que o homem precisa projetar agressividade, precisa resolver as coisas fisicamente e precisa ser o cabeça da família. Muito da frustração do protagonista vem do sentimento de emasculação por ter sido deixado pela esposa e proibido de ver a filha (justamente por uma agressividade prévia), algo que ele tenta compensar forçando sua presença na vida da ex-mulher como uma maneira de retomar o controle que julga ter sido tirado dele além de, claro, recorrer à violência e ao uso de armas.

As questões sobre masculinidade também aparecem no arco do detetive Pendergast (Robert Duvall) e a relação dele com os colegas. Seu capitão o julga indigno de ser policial por ele ter se afastado do trabalho campo e não ter se envolvido em confrontos físicos ao longo da maior parte de sua carreira, como se a carreira policial fosse algo dependente dessa “macheza” agressiva. Colegas de trabalho também o julgam inferior pelo fato de Pendergast tomar decisões em conjunto com a esposa ou até mesmo ceder a demandas dela, como se o fato de ouvir a esposa ou dar razão a ela o tornasse menos “homem”.

Na época do lançamento o filme chegou a ser criticado por seu potencial para encorajar pessoas a saírem armadas resolvendo seus problemas na bala e também por supostamente relativizar o comportamento violento. Eu diria, porém, que apesar de trazer críticas pertinentes à sociedade estadunidense, o texto deixa claro que o protagonista é um sujeito problemático cuja conduta agressiva é desproporcional e injustificada. Isso é demonstrado inclusive no final do filme, quando o protagonista e Pendergast finalmente se encontram e o personagem de Michael Douglas reconhece, atônito, que é ele o vilão da história.

Com uma performance intensa Michael Douglas e uma ampla crítica ao modo de vida estadunidense, Um Dia de Fúria é um dos mais memoráveis trabalhos de Joel Schumacher.


Trailer

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