Apesar de ser mais lembrado pelos dois filmes do Batman que
dirigiu, o diretor Joel Schumacher também conduziu muitos filmes marcantes nas
décadas de 80 e 90, como O Primeiro Ano
do Resto de Nossas Vidas (1985), Os
Garotos Perdidos (1987) e Um Dia de
Fúria (1993), o filme que revisitaremos hoje nessa coluna.
A trama segue um trabalhador (Michael Douglas) que abandona
o carro em um engarrafamento e decide ir andando para casa, já que é
aniversário da filha. Ao longo do caminho, ele não encontra nada além de
hostilidade e responde a isso de maneira agressiva, criando ainda mais
violência e espalhando o caos por onde passa.
A narrativa opera em vários níveis de crítica à sociedade e
cultura dos Estados Unidos e como o resultado de um grupo social com essa
estrutura e valores é uma receita para o desastre. A primeira coisa que chama
atenção é o individualismo. Praticamente todas as pessoas com as quais o
protagonista se encontra veem apenas o próprio lado e tentam se impor diante do
protagonista. O que resulta nessas interações não é uma conversa, uma troca,
mas um duelo em que um tenta forçar o outro a fazer o que quer e no qual o mais
agressivo sai vitorioso. Uma sociedade na qual as pessoas só se preocupam
consigo mesmas.
Isso, no entanto, não significa exatamente que o
protagonista é uma vítima. O texto deixa claro que antes desse dia tenso o
protagonista já era um sujeito desequilibrado e com propensão a violência. De
certa forma, tal como Coringa (2019),
não é a história de um homem bom destruído por um sistema econômico e social
cruel, mas de um homem problemático que se torna ainda pior por causa desse
sistema.
Assim, por mais que em muitas instâncias a raiva do
protagonista seja compreensível e fruto de problemas sociais legítimos, como na
cena do fast food ou sua frustração
por ter perdido o emprego e estar falido, ele não é um herói, um defensor do
povo ou qualquer coisa assim. Ele é um sujeito violento que reage
agressivamente quando as coisas não saem como ele quer e Michael Douglas é
ótimo em nos convencer da raiva fervilhante do personagem. A fotografia,
pendendo a tons quentes e saturados, focando bastante em matizes de laranja,
ajuda a transmitir a sensação de um calor causticante capaz de tirar alguém do
sério.
O protagonista é o retrato de uma classe média branca
educada para crer no “sonho americano”, que bastaria se esforçar e trabalhar o
suficiente que tudo seria seu, que as oportunidades eram iguais e tudo depende
de mérito. Ao perceber que embarcou em uma mentira, que o “sonho” não é como
ele pensou, que a sociedade é desigual e injusta, o personagem de Michael
Douglas passa a culpar aqueles ao seu redor por seus problemas. Os imigrantes,
os pobres, o crime, sem perceber que tudo isso é provocado pela mesma
desigualdade que o colocou para baixo.
Há também um comentário sobre masculinidade e noção tóxica
de que o homem precisa projetar agressividade, precisa resolver as coisas
fisicamente e precisa ser o cabeça da família. Muito da frustração do protagonista
vem do sentimento de emasculação por ter sido deixado pela esposa e proibido de
ver a filha (justamente por uma agressividade prévia), algo que ele tenta
compensar forçando sua presença na vida da ex-mulher como uma maneira de
retomar o controle que julga ter sido tirado dele além de, claro, recorrer à
violência e ao uso de armas.
As questões sobre masculinidade também aparecem no arco do
detetive Pendergast (Robert Duvall) e a relação dele com os colegas. Seu
capitão o julga indigno de ser policial por ele ter se afastado do trabalho
campo e não ter se envolvido em confrontos físicos ao longo da maior parte de
sua carreira, como se a carreira policial fosse algo dependente dessa “macheza”
agressiva. Colegas de trabalho também o julgam inferior pelo fato de Pendergast
tomar decisões em conjunto com a esposa ou até mesmo ceder a demandas dela,
como se o fato de ouvir a esposa ou dar razão a ela o tornasse menos “homem”.
Na época do lançamento o filme chegou a ser criticado por
seu potencial para encorajar pessoas a saírem armadas resolvendo seus problemas
na bala e também por supostamente relativizar o comportamento violento. Eu
diria, porém, que apesar de trazer críticas pertinentes à sociedade
estadunidense, o texto deixa claro que o protagonista é um sujeito problemático
cuja conduta agressiva é desproporcional e injustificada. Isso é demonstrado
inclusive no final do filme, quando o protagonista e Pendergast finalmente se
encontram e o personagem de Michael Douglas reconhece, atônito, que é ele o
vilão da história.
Com uma performance intensa Michael Douglas e uma ampla
crítica ao modo de vida estadunidense, Um
Dia de Fúria é um dos mais memoráveis trabalhos de Joel Schumacher.
Trailer
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