As melhores histórias de zumbis são as que exploram essa
transformação e a disseminação da praga como metáfora para relações humanas e
questões presentes na nossa estrutura social.
A primeira temporada de Boca a
Boca, série brasileira produzida pela Netflix, faz exatamente isso, além de
ganhar uma relevância maior para os seus temas por conta de ser lançada em meio
à pandemia do coronavírus. O texto a seguir pode conter SPOILERS da temporada.
Criada por Esmir Filho, responsável por Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), a trama se passa em uma
pequena cidade rural que é atingida por uma espécie de vírus que só atinge
jovens e é transmitido pelo beijo. Os infectados deixam de sentir qualquer
coisa, física ou emocionalmente, virando praticamente zumbis (sem o componente
do canibalismo). Os jovens Alex (Caio Horowicz), Chico (Michel Joelsas) e Fran
(Iza Moreira) tentam descobrir o que está acontecendo e como o contágio talvez
esteja relacionado com uma seita que vive nos arredores da cidade.
A crise expõe as rachaduras na sociedade aparentemente
perfeita da cidade de Progresso, demonstrando o preconceito e a clara divisão
de classes sociais que existe no local apesar de tentarem projetar a imagem de
um local desenvolvido e inclusivo. Aos poucos vamos descobrindo como essas
famílias aparentemente bondosas, tolerantes e progressistas escondem segredos
por baixo dessa aparente correção moral e ninguém é tão certinho como aparenta.
O “progressismo” dessa sociedade na verdade quer que todos
se conformem ao ideal de “normalidade” imposto para serem aceitos e qualquer
desvio dessas normas é tratado com exclusão e escárnio. Há um constante clima
de tensão e paranoia conforme a infecção avança e esses ditos “cidadãos de bem”
começam a se voltar uns contra os outros, o que acaba sendo aterrorizantemente
muito próximo de situações que estamos vivendo no mundo real atualmente.
Também retrata uma juventude na qual todas as experiências
de sociabilidade são mediadas por redes sociais e outros meios digitais. Cada
um cria uma persona online que nem
sempre reflete quem verdadeiramente são e apesar de estarem conectados
virtualmente uns com os outros ou mesmo fisicamente em alguns casos através de
trocas de beijos em festas e sexo casual, são profundamente solitários. Toda
essa conexão digital e física nunca se transforma ou é traduzida em uma conexão
emocional.
São jovens que expõem suas próprias imagens na internet o
tempo todo e interagem com completos desconhecidos, mas estão desconectados das
próprias emoções e não se abrem a ninguém a respeito de como se sentem, do que
os incomoda, do que os deixa ansiosos ou com medo. Apesar da exposição, apenas
mostram a superfície de si, inclusive consigo mesmos. Uma desconexão emocional
que não está presente apenas na relação dos jovens uns com os outros, também
existindo ou talvez sendo até mais grave na relação dos jovens com seus pais.
Nesse sentido, o vírus misterioso é uma manifestação física
da desconexão do jovem, tão incapaz de lidar com os próprios sentimentos que
literalmente deixa de sentir e se transforma em uma espécie de zumbi, que vaga
pelo mundo como se fosse uma pessoa normal sem, no entanto, absorver nada de
sua experiência com o mundo. Isso fica evidente quando um jovem infectado fica
se debatendo na maca gritando pelo celular, como se o aparelho e sua conexão
virtual o desligasse de si e do mundo, sendo parte desse processo de
zumbificação.
Não é à toa que o processo de cura passe justamente pela
necessidade de se conectar com os próprios medos e redescobrir as conexões
afetivas com os familiares, algo ilustrado na cena dos jovens com os pais na
água em que a canção infantil Peixe Vivo é
cantada com uma inesperada e poderosa carga emocional. Na cena a canção acaba
servindo como um lembrete da conexão entre pais e filhos criada ainda na
infância através de cantigas como a que é utilizada e como, ao longo de nossas
vidas, essas demonstrações de afeto entre pais e filhos acabam se esvaindo.
Com isso, a primeira temporada de Boca a Boca é simultaneamente uma competente história de terror e
uma hábil metáfora social para nossa desconexão emocional.
Nota: 9/10
Trailer
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