quinta-feira, 23 de julho de 2020

Crítica – Boca a Boca: 1ª Temporada


Análise Crítica – Boca a Boca: 1ª Temporada

Review – Boca a Boca: 1ª TemporadaAs melhores histórias de zumbis são as que exploram essa transformação e a disseminação da praga como metáfora para relações humanas e questões presentes na nossa estrutura social.  A primeira temporada de Boca a Boca, série brasileira produzida pela Netflix, faz exatamente isso, além de ganhar uma relevância maior para os seus temas por conta de ser lançada em meio à pandemia do coronavírus. O texto a seguir pode conter SPOILERS da temporada.

Criada por Esmir Filho, responsável por Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), a trama se passa em uma pequena cidade rural que é atingida por uma espécie de vírus que só atinge jovens e é transmitido pelo beijo. Os infectados deixam de sentir qualquer coisa, física ou emocionalmente, virando praticamente zumbis (sem o componente do canibalismo). Os jovens Alex (Caio Horowicz), Chico (Michel Joelsas) e Fran (Iza Moreira) tentam descobrir o que está acontecendo e como o contágio talvez esteja relacionado com uma seita que vive nos arredores da cidade.

A crise expõe as rachaduras na sociedade aparentemente perfeita da cidade de Progresso, demonstrando o preconceito e a clara divisão de classes sociais que existe no local apesar de tentarem projetar a imagem de um local desenvolvido e inclusivo. Aos poucos vamos descobrindo como essas famílias aparentemente bondosas, tolerantes e progressistas escondem segredos por baixo dessa aparente correção moral e ninguém é tão certinho como aparenta.

O “progressismo” dessa sociedade na verdade quer que todos se conformem ao ideal de “normalidade” imposto para serem aceitos e qualquer desvio dessas normas é tratado com exclusão e escárnio. Há um constante clima de tensão e paranoia conforme a infecção avança e esses ditos “cidadãos de bem” começam a se voltar uns contra os outros, o que acaba sendo aterrorizantemente muito próximo de situações que estamos vivendo no mundo real atualmente.

Também retrata uma juventude na qual todas as experiências de sociabilidade são mediadas por redes sociais e outros meios digitais. Cada um cria uma persona online que nem sempre reflete quem verdadeiramente são e apesar de estarem conectados virtualmente uns com os outros ou mesmo fisicamente em alguns casos através de trocas de beijos em festas e sexo casual, são profundamente solitários. Toda essa conexão digital e física nunca se transforma ou é traduzida em uma conexão emocional.

São jovens que expõem suas próprias imagens na internet o tempo todo e interagem com completos desconhecidos, mas estão desconectados das próprias emoções e não se abrem a ninguém a respeito de como se sentem, do que os incomoda, do que os deixa ansiosos ou com medo. Apesar da exposição, apenas mostram a superfície de si, inclusive consigo mesmos. Uma desconexão emocional que não está presente apenas na relação dos jovens uns com os outros, também existindo ou talvez sendo até mais grave na relação dos jovens com seus pais.

Nesse sentido, o vírus misterioso é uma manifestação física da desconexão do jovem, tão incapaz de lidar com os próprios sentimentos que literalmente deixa de sentir e se transforma em uma espécie de zumbi, que vaga pelo mundo como se fosse uma pessoa normal sem, no entanto, absorver nada de sua experiência com o mundo. Isso fica evidente quando um jovem infectado fica se debatendo na maca gritando pelo celular, como se o aparelho e sua conexão virtual o desligasse de si e do mundo, sendo parte desse processo de zumbificação.

Não é à toa que o processo de cura passe justamente pela necessidade de se conectar com os próprios medos e redescobrir as conexões afetivas com os familiares, algo ilustrado na cena dos jovens com os pais na água em que a canção infantil Peixe Vivo é cantada com uma inesperada e poderosa carga emocional. Na cena a canção acaba servindo como um lembrete da conexão entre pais e filhos criada ainda na infância através de cantigas como a que é utilizada e como, ao longo de nossas vidas, essas demonstrações de afeto entre pais e filhos acabam se esvaindo.

Com isso, a primeira temporada de Boca a Boca é simultaneamente uma competente história de terror e uma hábil metáfora social para nossa desconexão emocional.

Nota: 9/10


Trailer

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