sexta-feira, 3 de julho de 2020

Rapsódias Revisitadas – Miss Tacuarembó


Resenha Crítica – Miss Tacuarembó

Review – Miss TacuarembóLançado em 2010, o filme uruguaio Miss Tacuarembó parece aquele musical bem tradicional sobre uma mocinha sonhadora em busca do sonho de ser cantora. De certa forma é isso, mas, ao mesmo tempo, o modo relativamente autoconsciente com o qual conta essa história acaba fazendo dele algo mais que isso.

Na trama, a jovem Natalia Cristal (Natalia Oreiro) sempre sonhou em ser uma cantora de sucesso, desde sua infância na pequena cidade de Tacuerembó até quando se mudou para a Argentina. Ela acredita ter conseguido sua chance quando é chamada para participar do reality show “Tudo por um Sonho”, mas na verdade isso é um pretexto da produção para promover um encontro entre ela e sua mãe adotiva, Haydeé (Mirela Pascual), a quem Natalia não vê há anos.

A história é contada sob o enquadramento do reality show, com Natalia e Haydeé contando a história delas para a excêntrica apresentadora do programa, Patricia (Rossy de Palma). As idas ao passado curiosamente tem a fotografia carregada em tons de sépia, conferindo as imagens um aspecto de foto antiga, desgastada, denotando que estamos diante de uma memória.

Ao contar a vida da protagonista, a trama vai e volta em diferentes períodos da vida dela para mostrar os eventos formadores de sua personalidade. Esses flashbacks mostram a juventude da protagonista em um orfanato, a educação católica conservadora que teve e o contraste disso com sua paixão pela música pop estadunidense oitentista, por ritmos musicais latino-americanos e também por telenovelas. Essa mistura de elementos culturais poderia gerar algo em tom conflitante ou uma colcha de retalhos demasiadamente fragmentada ao ponto de não fazer sentido, mas o texto consegue amarrar tudo isso de maneira coesa.

Parte da coesão vem de um olhar que não leva nenhuma dessas matrizes muito a sério, como se o filme quisesse efetivamente brincar com essas formas de linguagem misturando e fazendo graça com todas elas. A busca da protagonista por identidade é, de certa forma, uma busca empreendida pelo próprio filme. Ele entende seu lugar discursivo como um produto influenciado tanto pela cultura estrangeira, estadunidense e europeia, fruto da colonização e dominação da América Latina, mas simultaneamente como algo indelevelmente marcado por suas raízes e por elementos da cultura local.

Assim, o filme tenta justamente encontrar sua identidade a partir desse reconhecimento de múltiplas influências e do campo da cultura popular como um espaço de constantes disputas e tensões por dominação e supremacia. O deboche e o humor usado para referenciar o cinema e a música estadunidenses da década de 80, em especial pelo uso da canção What a Feeling do filme Flashdance (1983), é uma forma de tentar se reapropriar e ressignificar de uma maneira pessoal uma influência externa que o filme sabe que não pode negar.

Nesse sentido, não é a toa que nunca ouvimos What a Feeling na versão original de Irene Cara, mas sempre a partir da voz de Natalia e de arranjos diferentes para a melodia. Os números musicais funcionam justamente como esse momento de síntese entre o popular e o tradicional, entre o estrangeiro e o local. Essa mistura se verifica na seleção de canções, que alterna entre obras conhecidas e canções originais, compostas especificamente para o filme. Também é percebida pelos modos de filmar esses números, variando entre uma linguagem onírica, de videoclipe ou publicidade (na canção do parque de diversões), mesclando várias influências e linguagens.

Nesse sentido, Miss Tacuarembó serve como uma ilustração para o processo de construção da identidade cultural latino-americana, reconhecendo a disputa de influências entre o local e o estrangeiro.


Trailer

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