O cineasta Ingmar Bergman costuma investigar os medos,
anseios e neuroses presentes na mente e na existência humana, como o relação
com a morte em O Sétimo Selo (1957)
ou a recuperação de traumas e identidade em Persona
(1966). Neste Sonata de Outono
Bergman mira seu olhar para as relações entre pais e filhos, na maneira como
isso nos define, nos marca e, de certa forma, nos traumatiza.
Na trama, a pacata Ava (Liv Ullman) recebe a mãe, Charlotte
(Ingrid Bergman), uma reconhecida pianista internacional, em sua casa. Ava
anseia pelo afeto e aprovação da mãe, mas Charlotte continua a tratá-la com
frieza e distanciamento. Aos poucos as tensões entre as duas vão crescendo até
inevitavelmente explodirem.
O confronto é construído de maneira bem cuidadosa e
inicialmente sutil. Quando Charlotte chega à casa de Ava o diálogo entre as
duas parece ameno e cordial, mas o texto e a interpretação de Ullman e Bergman
deixa algumas pistas dos problemas na relação de ambas. Um exemplo é quando Ava
menciona para a mãe que Helena (Lena Nyman), sua irmã caçula e com problemas de
saúde, está morando com ela. A surpresa de Charlotte soa estranha, afinal que
mãe ficaria anos sem saber do paradeiro da filha deficiente? Além disso, mais
que surpresa, Charlotte demonstra incômodo com a presença de Helena.
A oposição entre as duas também é explicitada desde o início
através das escolhas de figurino das personagens, um elemento evidenciado
principalmente na cena do jantar. Charlotte com o que parece ser um longo
vestido de festa se mostra uma mulher de requinte, vaidosa, que gosta de estar
bem arrumada, segura de si e da aparência. Já Ava veste as mesmas roupas de
sempre, blusas e saias simples, muito largas, que a fazem parecer uma camponesa
desengonçada e insegura. Essa oposição é importante, pois quando o conflito
entre as duas explodir descobriremos como muito da postura mansa e insegura de
Ava vem da relação complicada com a mãe.
O momento em que fica explícito que o conflito entre as duas
é inevitável é a cena do piano, quando Charlotte critica o modo como Ava toca
uma peça Chopin e senta ao piano para mostrar a filha a melhor maneira. A
conduta de Charlotte, no entanto, não é a de alguém preocupada em ensinar, mas
de demonstrar superioridade. Há um gesto muito pequeno de Charlotte (e o filme
nem chama muita atenção para ele, mas que diz muito sobre a postura dela
naquele momento), que é o instante em que ela baixa a partitura da música. Ao
fazer isso ela comunica o quanto Ava está distante de seu nível, demonstra sua
superioridade como pianista e esfrega na cara da filha que ela é um fracasso.
Quando a discussão entre as duas explode durante a madrugada,
o que era uma disputa velada, sutil, se transforma em um duro embate verbal na
qual ambas expõem suas frustrações, raiva e inseguranças. A condução de Bergman
evidencia o trabalho das atrizes em planos longos, com pouco movimento de
câmera, deixando que suas duas protagonistas conduzam o conflito e mobilizem
nossas emoções. A crueza com a qual ambas expõem os sentimentos e as marcas que
o distanciamento afetivo deixou em cada uma chega a ser difícil de assistir
dada a veracidade intensa que as duas protagonistas passam, como se
estivéssemos assistindo uma discussão real entre mãe e filha, invadindo uma intimidade
que não deveríamos ter acesso. O texto resiste a reduzir a disputa a um embate
maniqueísta, evitando vilanizar alguma das protagonistas.
Sonata de Outono
é, portanto, um exame intenso sobre as agruras das relações familiares e as
indeléveis marcas que elas deixam em cada um.
Trailer
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