segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Cobra Kai e os problemas da nostalgia

Crítica - Cobra Kai

Review Cobra Kai
Não tive nenhum interesse em Cobra Kai quando a série foi anunciada. A ideia de continuar a história de Karate Kid (1984) sob a perspectiva de Johnny Lawrence, o vilão o do filme original, parecia ser só mais um desses reboots caça-níquel que Hollywood vinha fazendo nos últimos anos. Produtos que não tinham nada a dizer ou fazer sobre essas propriedades e existiam apenas para explorar cinicamente o afeto do público por essas histórias e ganhar dinheiro.

A nostalgia, o olhar para o passado, eram reduzidos a produtos de consumo por engodos como O Rei Leão (2019) ou Jogador Nº 1 (2018), que desfiam coisas das quais gostamos na infância diante dos nossos olhos com nenhum outro objetivo além de nos fazer lembrar de nossa juventude, sem ter nada a dizer sobre isso. Temporadas recentes de South Park até fizeram piada com essa tendência nostálgica com as Member Berries, frutas que fazem as pessoas reviver as memórias de infância e que colocam quem come em uma espécie de torpor nostálgico.

Como South Park bem aponta, essa tendência consiste de um passadismo alienante, feito para nos manter dóceis consumindo em silêncio, gratos por podermos esquecer os problemas do mundo por algumas horas e lembrarmos de uma época em que éramos mais ingênuos e felizes. Imaginei que Cobra Kai fosse ser mais um nessa onda de revival oitentista, mas estava enganado. Cobra Kai é a antítese de todo esse movimento da indústria e vê esse apego a uma nostalgia acrítica não como um refúgio, mas como algo que impede as pessoas de amadurecerem. Posteriormente, o longa animado A Vida Moderna de Rocko: Volta ao Lar (2019) também adotaria uma postura crítica diante da atual onda nostálgica. 

Na trama, Johnny Lawrence (William Zabka) se tornou um adulto fracassado e alcoólatra que vive de subempregos. Mesmo trinta anos depois ele não superou a derrota que sofreu nas mãos de Daniel Larusso (Ralph Macchio) e culpa esse momento em sua vida por todos os seus fracassos. Já Daniel é um homem de sucesso, dono de uma rede de concessionárias, ele baseou toda a sua personalidade nesse único momento de sua juventude. Em seus anúncios, ele diz golpear os preços, chutar a concorrência, cumprimenta seus clientes com um grito de “banzai!” e dá aos compradores uma árvore de bonsai de brinde. Sua memória, sua nostalgia ao passado, foi reduzida a um produto a ser comprado e vendido.

Os dois colidem quando Johnny decide reabrir o Cobra Kai, seu antigo dojo, para ensinar Miguel (Xolo Maridueña), um adolescente que mora no apartamento ao lado dele e que está sendo atormentado pelos meninos populares da escola. Basicamente Johnny se torna o Sr. Miyagi (Pat Morita) de Miguel. Ao saber disso, Daniel resolve focar sua atenção em fechar o Cobra Kai, negligenciando a família e os negócios por conta dessa rixa. Qual o motivo de Daniel fazer isso? O Cobra Kai tem pouco efeito sobre sua vida presente, praticamente não o afeta. 

As razões parecem ser menos pragmáticas e mais afetivas. O retorno da disputa com Johnny o leva de volta à era de ouro que ele tanto evoca em seus comerciais, mas nunca conseguiu reviver. Transporta Daniel para tempos mais simples, onde bem e mal eram claramente definidos e algumas lições de vida ditas em platitudes cifradas resolviam tudo. Daniel é, portanto, movido pela nostalgia, pelo desejo de reviver antigas glórias. Do mesmo modo, Johnny vê em Miguel uma oportunidade de provar o valor, de reparar o fracasso do passado e retomar o controle da própria vida. Ele também é movido pelo desejo de reviver o passado. Muito do humor da série, inclusive, vem do fato desses personagens serem homens adultos com mais de 50 anos nas costas presos em uma rivalidade infantil, a esposa de Daniel constantemente pontua isso.

Ao longo das duas temporadas (uma terceira está a caminho) as tensões entre Daniel e Johnny crescem justamente por esse apego dos dois a rancores do passado. Um rancor que contamina inclusive os discípulos de ambos. Quando Miguel começa a namorar Sam (Mary Mouser), a filha de Daniel, o relacionamento dos jovens é envenenado pelos dois senseis, que contam para os adolescentes como o antigo rival é um babaca irredimível.

Essa ação demonstra como Johnny e Daniel ainda estão apegados a esse passado nostálgico no qual tudo era preto e branco, vilões e bandidos eram fáceis de identificar e tudo se resolvia. Eles falham em entender a complexidade do mundo e de si mesmos, de perceber que as pessoas são mais compostas de tons de cinza do que de cores absolutas. Isso não significa, no entanto, que esses dois personagens estão estagnados. Ao longo das duas temporadas vemos neles, especialmente em Johnny, um esforço de amadurecer e deixar de lado antigos hábitos tóxicos, mas isso só acontece quando eles deixam de lidar um com o outro com um olhar preso ao passado, mas pensando no presente. Com um olhar que analisa criticamente o passado e tenta extrair dele um aprendizado ao invés de uma reconstrução baseada em uma afetividade acrítica.

Quando isso acontece, Johnny e Daniel são capazes de agir com maturidade, ouvir um ao outro e até ensaiar a construção de um laço de amizade, como fica evidente nos penúltimos episódios de cada temporada. Nesses momentos, os personagens tem a chance de conversar livres dos rancores antigos e conseguem perceber que o outro não é o babaca unidimensional que imaginam e que, na verdade, eles tem muito mais semelhanças do que diferenças. O problema é que o apego ao passado impede que ambos enxerguem o futuro e esses breves momentos de entendimento não duram porque os dois retornam aos velhos hábitos, rancores e preconceitos passados.

O peso do passado também se faz sentir com o retorno de Kreese (Martin Kove) na segunda temporada. Ele é o melhor símbolo de como o passado não era essa época de ouro que os dois protagonistas pensam, mas algo marcado por comportamentos tóxicos, anacrônicos e que não tem mais lugar no mundo de hoje. A postura agressiva, violenta, preconceituosa e intolerante de Kreese, que insiste em dizer as pessoas de hoje estão muito “moles” e que é preciso resgatar os “valores” de antigamente é a síntese dos perigos do apego ao passado e de vê-lo apenas sob uma luz positiva.

O passado é também um espaço que contem coisas ruins, comportamentos reprováveis e visões de mundo que precisam ser amadurecidas. A presença de Kreese faz Daniel e Johnny praticamente regredirem à rivalidade de adolescência, com o antigo sensei fazendo de tudo para fomentar brigas entre os dois e seus respectivos alunos. A insistência de Kreese, Daniel e Johnny na manutenção de uma rivalidade tóxica, que não tem mais razão de existir, acaba levando a uma tragédia no final da segunda temporada e não deixa espaço para dúvida que todo esse apego ao passado trouxe problemas graves às vidas de Johnny, Daniel e os alunos deles. Evidencia que as coisas não podem ser mais como eram, que os tempos mudaram e que a rivalidade de outrora não produzirá a vitória do bem contra o mal como antes, pois no mundo adulto bem e mal não são tão simples de separar.

É por esse olhar crítico ao passado, por nunca se deixar reduzir a um memorialismo infantilizado como tantos outros revivals, que Cobra Kai funciona tão bem. O passado não é um refúgio, é bem mais complexo que isso. Aqui vemos que o passado tem sim elementos positivos que podem ser lembrados (e até revividos, como a cena em que Daniel reproduz um antigo encontro com a esposa), mas que traz consigo toda sorte de vivências, valores e olhares que precisam ser deixados de lado, amadurecidos ou superados.

Para a série, olhar para o passado não é apenas um exercício de nostalgia e de afeto, é também um exercício crítico e analítico. Resgatar o passado, apenas por resgatar, sem qualquer reflexão, pode ser muito problemático, como ilustram os arcos dos protagonistas, pode produzir indivíduos imaturos, desconectados do contexto em que vivem, que negligenciam o presente para reviver algo que não tem como ser plenamente revivido.

Não sei se os realizadores de Cobra Kai tinham a intenção de fazer uma série que comentasse toda essa complexidade da relação com o passado ou que servisse de contraponto para toda a onda nostálgica que tem tomado Hollywood. Talvez não tivessem nada disso em mente, talvez só tivessem interesse em contar uma boa história sobre esses personagens, de tentar entender quem seriam esses sujeitos décadas depois e o que moveria eles enquanto indivíduos. Independente da intenção, a construção do percurso desses personagens dá margem a leituras sobre essa relação com nostalgia e passado e considerando o contexto no qual a série foi lançada, é difícil não enxergar como a maneira que a relação com o passado construída aqui serve como contraponto para o nostalgismo simplório que tem tomado a indústria.


Trailer

Um comentário:

Unknown disse...

A série é desnecessária, previsível, clichê e de humor pastelão.