Ainda assim, resolvi conferir este Hades (disponível para Switch e PC) porque gosto muito do trabalho da desenvolvedora Supergiant Games (responsável por Bastion, Transistor e Pyre) e fiquei bem surpreso com o que encontrei. Não só os elementos de roguelike conseguem ser desafiadores sem, no entanto, eliminar o sentimento de progresso ao oferecer uma boa quantia de upgrades permanentes, como também a estrutura repetitiva do game é trazida para dentro da estrutura narrativa do jogo.
O jogador controla Zagreus, filho de Hades, deus do mundo dos mortos na mitologia grega. Zagreus é imortal e tem uma péssima relação com o pai, que ocultou sua existência dos demais deuses do Olimpo. Farto de Hades, Zagreus decide fugir do submundo, mas para isso precisará escapar dos diferentes níveis que compõem o lugar, cada um deles guardado por diferentes monstros e com uma criatura poderosa e devota a seu pai guardando os portões que separam cada nível.
A ação é vista de uma perspectiva isométrica, tal qual em Bastion, com Zagreus navegando por salas randomizadas cheias de monstros. Ao final de cada sala há uma recompensa, como pontos de habilidade, dinheiro, upgrades para os pontos de vida do personagem ou bênçãos de deuses do Olimpo. Zagreus tem diferentes armas a disposição, mas só pode carregar uma a cada tentativa de fuga, ele também tem um dash veloz que é útil para se locomover e esquivar, além de um ataque de projétil que se prende ao inimigo e que só pode ser usado novamente depois que o inimigo atingido por morto e o projétil recuperado.
O combate é veloz e variado por conta das diferentes e diferentes modificadores que Zagreus pode receber a cada tentativa de fuga conversando com diferentes como Athena, Ares, Zeus ou Poseidon que podem aparecer aleatoriamente em cada sala. Com o tempo, vamos aprendendo como combinar de maneira eficiente esses diferentes incrementos, como a habilidade de defletir projéteis dada por Athena com um dash que empurra os inimigos para longe dada por Poseidon.
Ocasionalmente o jogador pode encontrar dois deuses ao mesmo tempo, precisando escolher um, mas o rejeitado costuma atacar o jogador, ofendido pela rejeição e demonstrando a natureza volátil dos deuses do Olimpo, mesclando uma mecânica de jogabilidade com a dinâmica da narrativa. Sobreviver a esses momentos de fúria divina dá a Zagreus também a benção do deus inicialmente rejeitado (ou uma benção que combina habilidades dos dois deuses) trazendo uma lógica de risco e recompensa para esses encontros. O único problema do combate é que jogando no modo portátil do Switch, encontros com muitos inimigos ou projéteis voando ao mesmo tempo tornam difícil se situar em meio ao caos por conta da tela pequena.
A cada morte Zagreus retorna para os salões da corte do submundo, onde é recebido pelo pai e por outros habitantes do local, como o guerreiro Aquiles, os deus Thanatos e Hipnos ou a deusa Nyx. Cada um deles sempre tem alguma coisa a dizer depois de cada tentativa de fuga feita pelo jogador, com as reações de Hades, por exemplo, variando entre alguma provocação pelo fracasso de Zagreus ou expressando sua desaprovação parental. As constantes reclamações de Hades me fizeram entender a relação tóxica que há entre ele e Zagreus, me fazendo querer ainda mais escapar daquele lugar, um exemplo de como o jogo consegue construir imersão narrativa dentro da natureza repetitiva de um roguelike.
A cada nova tentativa vamos conversando com os membros da corte ou com os deuses que beneficiam Zagreus com bênçãos e vamos aprendendo mais sobre as complexas relações entre esses personagens, seus interesses, suas personalidades e a trama depende das múltiplas mortes do jogador e dessas múltiplas conversas para ser plenamente compreendida. Essas relações contem a segunda mecânica principal do jogo além do combate, funcionando como um simulador de relacionamentos. Conversando com esses personagens e dando presentes a eles, Zagreus não só aprende mais sobre eles e o mundo que os cerca, como também recebe equipamentos e missões secundárias.
Cumprir essas missões, como reunir Aquiles e seu namorado Pátroclo ou levar Orfeu a sua musa Eurídice não só oferece ótimas histórias, cheio do drama e tragédia que se espera de um épico mitológico, como também traz benefícios no combate, com novos itens e bônus que facilitam cada tentativa de fuga. Com raras exceções (como Rogue Legacy) jogos do gênero raramente conseguem fazer cada tentativa contar como parte do desenvolvimento da trama, mas Hades consegue fazer isso muito bem. Morrer aqui não é frustrante ou dá a ideia de perda de tempo porque sei que a trama avançará um pouco mais a cada tentativa.
As batalhas contra chefes também se beneficiam da ideia de que esses personagens lembram e reconhecem as tentativas anteriores de Zagreus. Assim, quando retornamos a um chefe previamente derrotado com habilidades mais poderosas, esses chefes ocasionalmente também exibem novos padrões de ataque, habilidade e até modificações na aparência. Desta maneira, temos a sensação de que a cada tentativa vai se formando uma rivalidade crescente entre Zagreus e cada chefão, que comentam no início da batalha sobre quererem se vingar do personagem ou se vangloriam por ter derrotado o jogador na tentativa anterior.
Essa variedade de histórias, somada com a variedade de opções de combate, habilidades customizáveis e bênçãos divinas a serem obtidas a cada tentativa dão ao jogo um enorme valor de replay. Afinal mesmo depois de sua primeira tentativa de fuga bem sucedida do submundo ainda haverão histórias e amizades a serem ampliadas com cada personagem ou novos bônus divinos a experimentar.
Com isso Hades é um excelente roguelike que consegue construir uma narrativa envolvente, repleta de personagens carismáticos e integrá-la de maneira surpreendentemente orgânica à lógica de tentativa e erro que marca a jogabilidade do gênero.
Nota: 9/10
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