O documentário abre com Caetano falando da noite em que foi preso, narrando que ninguém deu voz de prisão a ele ou qualquer coisa parecida, apenas que ele tinha sido chamado para depor. A fala ilustra as arbitrariedades do regime e como pessoas eram detidas sob falsos pretextos e sem o devido processo legal, atropelando direitos civis e liberdades individuais.
O documentário segue com apenas Caetano em cena. Não há qualquer outra imagem no filme, exceto pelo finalzinho que exibe closes da transcrição do interrogatório de Veloso na época (e lido pelo próprio ao longo do documentário), além de Caetano. Ninguém mais é ouvido, nenhuma outra fonte de imagem, captada pelo filme ou pré-existente é mostrada. É uma escolha corajosa, já que ter apenas uma pessoa falando por cerca de oitenta minutos poderia resultar em algo extremamente moroso, mas o filme parece confiar na capacidade de oratória de seu protagonista (e Caetano é, de fato, um ótimo narrador) e na força da história que ele conta.
De certa forma, essa escolha de usar apenas o testemunho para narrar as desumanidades sob as quais um indivíduo é submetido me remetem a Shoah (1985), obra monumental (são quase nove horas e meia) de Claude Lanzmann sobre o Holocausto. Lá, o diretor também recorre ao testemunho como evidência principal e praticamente única das atrocidades cometidas pelos nazistas. O raciocínio é o de que na falta de muitas evidências propriamente documentais (como fotos, arquivos ou outros tipos de repositórios de memória) os corpos dos sobreviventes seriam em si a evidência daquilo que se tentou apagar pelo regime então em vigor.
Essa parece ser a mesma lógica que governa este documentário. Na falta de fotos ou imagens sobre o que aconteceu com Caetano ou qual foi sua experiência subjetiva enquanto vivenciava tudo aquilo, o filme prefere não construir imagens, não recorrer a simulações reencenações ou testemunhos de outros envolvidos. Ao invés disso, prefere que a materialidade física de Caetano sejam o documento do que foi vivido.
O corpo e a voz do cantor trazem em si as evidências do que foi vivenciado por ele. Isso é perceptível, por exemplo, no momento em que Caetano narra como um sargento quebrou as regras para permitir que o cantor fosse visitado pela esposa e como isso posteriormente rendeu uma canção. Imediatamente a voz do cantor fica embargada, seus olhos se tornam marejados e ele pede para parar de filmar. A ação mostra como os eventos, apesar de ocorridos há mais de 50 anos, ainda estão presentes para ele, como feridas que nunca cicatrizam, registradas, documentadas em sua mente e corpo.
Essa evidência não está apenas no choro, mas também no riso, como na gargalhada que ele dá ao ler um documento militar da época (ou seja, mesmo documentos formais chegam a nós filtrados pelo olhar de Caetano) e ver que a música dele é descrita pelos oficiais como “desvirilizante”, fazendo o músico rir diante falta de clareza do conceito e também do absurdo da música dele ser classificada de tal maneira. Há também o riso de nervoso ou alívio, como o momento em que ele narra quando oficiais o tiraram da cela sem dizer para onde iriam e Caetano teve certeza que seria executado apenas para descobrir que teria os cabelos cortados. O riso de Caetano denota a tensão e nervosismo vivenciados por ele na prisão, quando qualquer coisa poderia significar um fim iminente.
Narciso em Férias
é, portanto, uma grata surpresa que traz um resgate importante da memória sobre
a ditadura militar sustentado pela força do relato de Caetano Veloso e por uma
direção que torna o cantor uma prova viva dos eventos narrados.
Nota: 8/10
Trailer
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