quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Rapsódias Revisitadas – Vou Rifar Meu Coração

Resenha – Vou Rifar Meu Coração

Review – Vou Rifar Meu Coração
Música brega. O termo que designa todo um gênero musical já traz consigo um juízo de valor negativo. Afinal a palavra brega se refere a algo sem modos, sem cortesia, de conduta indelicada. Ainda assim milhões de pessoas escutam essas músicas, cantores do gênero tem legiões de fãs e canções do gênero permanecem na memória coletiva do cancioneiro popular brasileiro. Dirigido por Ana Rieper, o documentário Vou Rifar Meu Coração tenta entender a razão desse tipo de música ser tão adorada e o que está por trás dos discursos que inferiorizam e vilipendiam esse tipo de música.

O filme se divide em duas frentes. Temos entrevistas com fãs do gênero no interior do Brasil nas quais essas pessoas falam como se sentem representadas por essas músicas e como elas contam histórias parecidas com as de suas vidas ou suas experiências amorosas. Também há conversas com cantores do gênero, como Wando, Nelson Ned, Amado Batista, Lindomar Castilho e Agnaldo Timóteo que falam sobre suas composições e a respeito do tratamento negativo que no mundo da música.

O exame sobre esse gênero musical feito por Ana Rieper revela aqui que há um viés classista nas críticas e na inferiorização da chamada música brega. É uma música mais apreciada por populações periféricas, de baixa renda e/ou de regiões do interior, feita também por músicos que vem de camadas mais humildes da sociedade. Nesse sentido, a ideia de que o brega seria uma música inferior estaria diretamente conectada ao fato de ser uma música feita por populações de baixa renda, já que isso não seria refinado ou erudito o suficiente para as altas camadas sociais que durante muito tempo foram as responsáveis por disseminar ideias de “bom gosto” artístico.

Isso gerou algumas distorções sobre a noção de cultura, criando distinções entre uma “alta” (no sentido de qualidade e classe social) e “baixa” (idem) cultura que não é nada mais do que uma racionalização de preconceitos de classe anacrônicos. Na prática e campo dos estudos culturais contemporâneos já não há mais essa ideia de que existem culturas superiores a outras, isso é um dispositivo discursivo, normalmente usado por aqueles que tem poder para criar um abismo ainda maior entre eles e aqueles que não tem.

Ao longo do documentário vemos o quanto as pessoas adoram essas músicas por se sentirem representadas por elas, por ouvirem as letras e detectarem nelas semelhanças com suas histórias de desilusões amorosas, amantes ou paixões surgidas em cabarés. São, portanto, canções que representam uma experiência sensível de mundo de uma parcela considerável da população e nesse sentido dizer que esse gênero musical seria pouco importante enquanto arte ou cultura é também dizer que as experiências de vida dessas pessoas também é pouco importante, por isso a ideia de uma cultura “baixa” ou “menor” é tão problemática.

Vemos, portanto, que a razão dessas canções mobilizarem tantas pessoas ao redor delas é porque os fãs se veem representados por essas músicas de uma maneira que nenhum outro gênero musical os representa e isso forma uma conexão poderosa com essas formas artísticas. Do mesmo modo, os cantores falam sobre o preconceito que sofrem no mundo musical por conta da música que fazem, refletindo que suas letras falam de amor e paixão como outros cantores que são celebrados, mas por contarem histórias envolvendo cabarés ou traições isso é considerado de mau gosto, como se até mesmo as altas camadas da sociedade não fossem traídas ou tivessem contato com prostitutas.

As entrevistas com os cantores revelam que as letras são tiradas de suas próprias experiências ou de pessoas próximas, reforçando a ideia de que são músicas centradas na experiência de mundo de certos setores da população brasileira que não se vê representada em muitos espaços midiáticos. Alguns entrevistados, como Agnaldo Timóteo, também revelam o quanto essa associação entre o termo brega e baixa qualidade estão enraizadas no senso comum, com Timóteo rejeitando que as pessoas possam usar esse termo para qualificá-lo porque ele teria uma voz perfeita e a prova de críticas.

Com um olhar atento e afetuoso para o universo da música brega,  Vou Rifar Meu Coração é uma competente investigação que demonstra os motivos da permanência desse tipo de música no imaginário popular, bem como uma compreensão dos motivos contidos nos discursos que tentam inferiorizar o gênero.


Trailer

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