quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Crítica – Lovecraft Country (Parte 2)

Análise Crítica – Lovecraft Country (Parte 2)


Review – Lovecraft Country (Parte 2)
Na primeira parte do texto sobre Lovecraft Country, falei sobre como a série usava o terror e a fantasia para abordar os elementos das vivências negras nos EUA, usando monstros, assombrações, cultos e outros elementos como metáforas para processos de racismo, exploração e desigualdade social. Nessa segunda parte vou tentar observar como a série lida com questões de identidade e a construção de papeis sociais aferidos a negros ou a mulheres. Avisamos que o texto contem SPOILERS.

O quarto episódio continua a expandir o jogo que a série faz com certos elementos da ficção de horror, fantasia ou aventura ao inserir os personagens em uma trama que poderia tranquilamente ter saído de filmes como Indiana Jones ou A Lenda do Tesouro Perdido (2004). Ao procurar um cofre secreto do culto liderado pela família Braithwhite, eles começam a explorar as catacumbas de um museu que, logicamente, está repleta de armadilhas.

Os diálogos entre Tic, Leti e Montrose explicitam a natureza autoconsciente do episódio, com o trio usando o conhecimento de narrativas de aventura para pautar como devem prosseguir pelos testes e tribulações impostos pelo labirinto. Até mesmo a música de fundo do episódio, com um uso constante de instrumentos metálicos, remete às composições de John Williams para os filmes do Indiana Jones.

Como em outros episódios, a ideia de que um museu guarda ainda mais informações e histórias em seus subterrâneos serve como metáfora para a construção das narrativas históricas e os modos pelos quais a história que é ensinada em salas de aula ou museus é apenas um pedaço, um recorte, um índice, de um registro histórico muito maior. O que vai à superfície é apenas o que interessa aos desígnios e visões de mundo daqueles que detêm o poder sobre a escrita desse relato histórico e os registros que não interessam são relegados ao esquecimento, jogados nos subterrâneos e porões da memória histórica.

O quinto episódio remete a elementos do horror corporal e histórias tipo O Médico e o Monstro. Centrado em Ruby (Wunmi Mosaku), a irmã de Leti, a trama acompanha Ruby conforme ela se aproxima de um dos membros do culto, William (Jordan Patrick Smith) e aprende a usar mágica para mudar sua aparência e conseguir o emprego que deseja. A mágica transforma Ruby em uma mulher branca e na primeira cena em que ela sai na rua com a nova aparência a personagem já experimenta o privilégio branco e a diferença no tratamento que recebe das pessoas. Isso fica evidente quando é ajudada por um garoto negro e a polícia rapidamente chega em socorro da Ruby branca, supondo que o garoto está fazendo algo contra ela. Apesar de nunca ser dito explicitamente, Ruby entende que naquele momento tem a vida do garoto nas mãos (literal e metaforicamente), bastando uma palavra dela como mulher branca para destruir a vida do menino.

O fato da transformação ser um processo sangrento e doloroso não é por acaso e certamente não foi pensado apenas para nos chocar com o habilidoso uso de maquiagem e efeitos digitais. Serve também para mostrar como Ruby sofre para ser alguém que não é apenas para obter aceitação da sociedade. Como ela se “embranquece” tentando se encaixar em um corpo e proporções nas quais sua aparência não se encaixa, remetendo a todo um discurso social sobre como os traços étnicos da população negra são considerados feios e inferiores, criando um problema de autoestima no qual as pessoas recorrem a procedimentos estéticos para afinar narizes ou alisar cabelos.

Para além da questão da aparência, a necessidade dela se transformar para poder conseguir um emprego para o qual é obviamente qualificada deixa explícito como a sociedade demarca que posições as pessoas podem ocupar dependendo da cor da pele. Nesse sentido, a dor e o sofrimento da transformação simbolizam também os sacrifícios descomunais que alguém precisa fazer para tentar romper essa lógica excludente da sociedade. A revelação de que William era na verdade Christina Braithwhite (Abby Lee) transformada mostra que além das discriminações de etnia, a sociedade também discrimina por gênero e mesmo alguém branca e rica como Christina não consegue ser aceita em todos os espaços por ser mulher.

O sexto episódio traz um flashback de Tic na Guerra da Coreia, uma guerra que inclusive é pouco lembrada pelo audiovisual estadunidense (M.A.S.H sendo um dos poucos produtos a tratar desse período). Em geral eles costumam focar na superioridade moral da Segunda Guerra Mundial ou no grande fracasso que foi o Vietnã, ignorando que a da Coreia também foi uma guerra igualmente inútil e fútil, feita para combater o espantalho retórico do comunismo sem produzir qualquer resultado. Nesse sentido, o episódio serve para trazer uma discussão sobre um momento histórico do país pouco lembrado e pouco discutido, assim como Watchmen fez no ano passado com o massacre de Tulsa em 1921. Sim, Lovecraft Country também vai discutir os eventos de Tulsa, mas falarei disso na terceira e última parte da crítica da série.

Esse episódio finalmente explica quem é Ji-ah (Jamie Chung) a misteriosa mulher que aparece nas visões/delírios/memórias de Tic. Como de costume na série, temos aqui mais uma inteligente revisão de alguns elementos do horror na história de Ji-ah e no fato dela ser um espírito invocado para obter vingança sobre uma garota que foi estuprada. O modo como Ji-ah cria algo que se parece com diversos tentáculos de cabelos para penetrar no corpo de suas vítimas masculinas durante o sexo e então trucidá-los é uma espécie de inversão da lógica dos chamados “pornô de tentáculos” nos quais mulheres normalmente são atacadas e violentadas por seres com múltiplos membros. Ao inverter a lógica, o que era fetiche e fantasia de poder masculina passa a ser horror ao fazer o homem se colocar como vítima.

Ao mostrar os atos de violência que Tic cometeu contra a população coreana na guerra, a trama reflete sobre como uma população historicamente privada de direitos, como os negros, pode ser colocada para oprimir outras minorias pela máquina da guerra colonialista e imperialista dos EUA. No entanto essa crítica nunca se efetiva por completo, já que os sonhos e esperanças de Ji-ah são moldados pelos próprios EUA que violentam seu país na forma do cinema e dos filmes musicais de Judy Garland, especialmente Agora Seremos Felizes (1944), apresentando os EUA e sua cultura como simultaneamente doença e bálsamo, sendo que a coisa é um pouco mais complexa. De certa forma, isso me lembra os escritos de Frantz Fanon nos quais o autor tratava sobre como o cinema hollywoodiano faz o oprimido torcer e adotar o ponto de vista do opressor.

O sétimo episódio é centrado em Hippolyta (Aunjanue Ellis), a esposa de George. Até então ela tinha uma participação discreta, ainda que marcante, mas era evidente que desde quando ela começou a investigar por conta própria a morte de George que Hippolyta teria seu momento sob os holofotes. Devo dizer que a espera valeu a pena. Em uma trama mais próxima da fantasia e da ficção científica, a personagem viaja através do tempo e do espaço para descobrir seu próprio lugar no universo.

Ao entrar em uma fenda dimensional Hippolyta é interpelada por uma figura alienígena, cujo visual remete ao afrofuturismo (e à personagem Garnet de Steven Universo), a nomear a si mesma. A personagem fica confusa com um pedido simples, mas ao mesmo tempo complexo. O ato de dar nome traz em si uma série de implicações. Dar nome significa conhecer a natureza intrínseca de algo de modo a escolher o nome mais apropriado. Implica também em relação direta com o que é nomeado, muitas vezes de posse. Desta maneira, nomear a si mesma significa atingir um alto grau de autoconhecimento e, de certa forma, se tornar dona de si mesma.

Essa ação coloca Hippolyta para buscar em si as respostas do que ela realmente queria fazer com a vida e que teve de abrir mão para ocupar o lugar de mulher e mãe de família escolheu por amor a George. A ideia de que liberta daquele papel social Hippolyta pode literalmente viajar pelo tempo e espaço para dançar com Josephine Baker ou lutar como uma amazona ilustra o potencial ilimitado da mulher, de como ela foi sufocada, apequenada e apagada simplesmente porque cresceu ouvindo que só havia um espaço e função que poderia desempenhar.

Hippolyta, porém, não é a única personagem da série que se anulou e viveu como alguém que não era apenas para cumprir o papel social que lhe era reservado. Esse é também o arco de Montrose e o fato dele ter precisado esconder quem era impactou sua relação com os outros, inclusive com Tic. Essas e outras discussões sobre a série serão abordadas na terceira parte.

Confiram aqui as outras partes:

Parte 1

Parte 3

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