sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Crítica – Lovecraft Country (Parte 3)

 

Análise Crítica – Lovecraft Country (Parte 3)

Review – Lovecraft Country (Parte 3)
Nas duas partes anteriores da análise de Lovecraft Country falei como a série trabalhava com vários elementos típicos do terror e da fantasia para falar de elementos da experiência negra nos EUA. Avisamos que o texto abaixo contem SPOILERS.

A questão da brutalidade policial, por exemplo, aparece no oitavo episódio, que lida com o trauma coletivo da morte de Emmett Till, um brutal crime real que chocou (e choca ainda hoje) tanto pela violência do crime quanto pela sua motivação banal (ele supostamente teria assoviado para uma mulher branca) e pelo fato dos assassinos terem ficado impune.

A ideia de que as autoridades detêm um controle e poder sobre as vidas da população negra é ilustrada pelo arco de Dee (Jada Harris) ao longo do episódio. Amaldiçoada por um policial que faz parte do culto em busca do sangue de Tic, Dee começa a ser perseguida por duas entidades que se parecem como duas garotas gêmeas em blackface, maquiadas para reproduzirem traços da população negra de maneira caricatural e deturpada. A lógica da maldição se assemelha a da criatura de Corrente do Mal (2014), que não para de seguir o alvo até matá-lo, enquanto da ideia de alguém ser perseguido por um duplo deturpado remete a Nós (2018), do Jordan Peele, um dos produtores da série.

Além da metáfora para a brutalidade policial, a imagem das pickaninny (termo usado para designar essas caricaturas de crianças negras) também simboliza o quanto esse tipo de representação negativa, feita para mostrar o negro como inferior, estúpido e animalizado assombra a comunidade. Para sobreviver Dee tem que literalmente fugir dessas imagens (como o personagem Jim Crow) que foram criadas por artistas de teatro no pós Guerra de Secessão com o intuito de inferiorizar a população negra e tranquilizar a população branca quanto a sua “superioridade” perante os negros recém libertos. O episódio transcorre como um tenso jogo de gato e rato conforme Dee tenta se libertar dessas assombrações e, simbolicamente, desses estereótipos que a sociedade tenta impor a ela.

Outro personagem em fuga, mas de si mesmo, é Montrose, pai de Tic. Desde o início da série é estabelecido que Tic e o pai tem uma péssima relação por conta das constantes agressões físicas de Montrose a Tic, que sempre acusava o filho de ser “mole demais”. Conforme a trama progride, descobrimos que Montrose escondeu do filho (e da maioria das pessoas) que era gay. A informação nos faz entender o quanto Montrose parecia um sujeito amargo e frustrado, afinal, nunca pode viver como de fato queria. Também recontextualiza a relação dele com Tic, já que as surras pela suposta moleza do filho ocorriam mais por Montrose não se aceitar enquanto homem gay do que por qualquer coisa feita por Tic.

Mesmo ao saber a verdade sobre o pai, a relação entre Montrose e Tic continua estremecida até o episódio 9, que envolve os personagens voltando no tempo para recuperar o Livro dos Nomes. A viagem os leva até Tulsa em 1921, bem no dia do Massacre da Wall Street Negra, o maior episódio de violência racial dos Estados Unidos. Quem assistiu a minissérie de Watchmen ano passado entende que esse evento é um ponto crucial para entender os motivos da população negra não prosperar financeira ou economicamente no país.

Nesse sentido, a ida a Tulsa mostra como é preciso observar o passado para compreender o presente e transformar o futuro. Isso se aplica tanto à questão do racismo e da necessidade de reparações para a população negra quanto à jornada de Tic, Leti e os demais. A viagem ao passado lembra a esses personagens o quanto eles perderam. Não só naquele momento, mas como os eventos em Tulsa mudaram o futuro de todos eles e revisitá-los é a chance de construir alguma maneira de reparação através do uso do Livro dos Nomes e do conhecimento obtido ao retomar um contato com uma ancestralidade que tinha sido negada a esses personagens por conta da violência racial.

Do mesmo modo, olhar para o passado permite a Tic entender o Montrose passou e como a escolha de viver no armário para ter uma família, ainda que tenha causado muitos problemas a ambos, foi uma escolha motivada por amor. Desta maneira, revisitar e entender o passado não só traz uma oportunidade de reparação para eles enquanto comunidade, mas também a reparação de relações individuais entre eles.

O episódio final traz o confronto derradeiro entre a família de Tic e Christina. Aqui, mais uma vez a série aponta a necessidade de se conectar com o passado e os antepassados para poder superar a opressão e o racismo como é evidenciado pelo momento em que Tic e Leti viajam a uma dimensão fora do tempo para falar com a avó e outra ancestral de Tic.

O confronto com Christina também mostra que, apesar de não ser completamente desumana e exibir um certo afeto por Ruby e capacidade de empatia, Christina não entende o lugar de privilégio que ocupa ou as implicações de suas ações em relação a Tic. É possível ver isso com clareza na cena em que ela visita o protagonista e diz que para ela aquela nunca foi uma disputa pessoal, que ele era apenas um instrumento na busca por pelo objetivo dela por imortalidade. A fala de Christina ilustra o modo como os brancos de classe alta veem os negros como ferramentas e não como pessoas, achando natural construir sua prosperidade em cima do sangue dessa população. Para Tic e os demais, logicamente a questão é pessoal, afinal são as vidas deles em jogo.

O desfecho mostra como grandes transformações muitas vezes requerem sacrifícios e que por vezes é inevitável ter que se entregar em nome de um bem comum. Por outro lado, as últimas cenas não conseguem dar o devido peso ou dimensão da ampla conquista alcançada pelos personagens, afinal banir os brancos de usarem magia simboliza tirar deles instrumentos de poder para a manutenção das desigualdades e a maneira como há pouco tempo depois do ritual para amarrar todas as pontas soltas e dar conta do impacto desse evento acaba não sendo o suficiente.

Isso, no entanto, não tira o brilho ou o impacto de Lovecraft Country e do exame poderoso que a série faz sobre questões raciais a partir de elementos comuns do terror.


Confiram aqui as outras partes:

Parte 1

Parte 2

Um comentário:

Marcelo disse...

Massa! - parece muito bem feita...