domingo, 3 de janeiro de 2021

Crítica – Nunca, Raramente, As Vezes, Sempre

Crítica – Nunca, Raramente, As Vezes, Sempre


Review – Nunca, Raramente, As Vezes, Sempre
Falar sobre aborto e questões relacionadas ao acesso ao aborto não são temas fáceis. Filmes que tratam do tema muitas vezes adotam um tom excessivamente panfletário e didático com diálogos pouco orgânicos que funcionam como palestras ao espectador sobre a necessidade de descriminalizar o aborto e deixá-lo acessível por questões de saúde pública. Esse erro nunca é cometido por este Nunca, Raramente, As Vezes, Sempre, da diretora Eliza Hittman,

A trama é centrada em Autumn (Sidney Flanigan), uma garota do interior dos Estados Unidos que descobre estar grávida. Quando ela vai a uma clínica em sua cidade se informar sobre a questão, é atendida por pessoas que a estimulam a continuar com a gravidez, mesmo que seja para posteriormente dar o bebê para adoção. Querendo encerrar a gravidez, Autumn pesquisa sobre as leis de aborto em diferentes estados e resolve ir até Nova Iorque. Acompanhada pela amiga Skylar (Talia Ryder), a única pessoa com quem confidencia a situação, Autumn reúne um pouco de dinheiro e parte em sua viagem até Nova Iorque.

O filme mostra como os diferentes atendimentos de profissionais de saúde de saúde e assistentes sociais impactam a protagonista. Em sua cidade ela é tratada com certo distanciamento e por pessoas que não parecem dispostas a ouvi-la, se limitando a alguns panfletos e tentar dissuadir a protagonista a fazer um aborto, sem sequer tentar entender as razões dela querer esse procedimento. Já em Nova Iorque o tratamento é muito mais acolhedor, preocupado em entender Autumn e a situação social dela com perguntas que indagam se ela foi agredida, estuprada ou forçada a abortar. O texto também é competente em ilustrar a natureza obtusa das leis de aborto nos Estados Unidos. Como cada estado tem autonomia para decidir sobre a questão, não há uma legislação unificada e cada estado tem especificidades que podem dificultar ou facilitar o processo.

Tudo isso poderia soar excessivamente didático, mas o grande acerto da narrativa acaba sendo olhar delicado e sensível para a questão. Tudo é filtrado pelo ponto de vista, sensações e emoções de Autumn e, desta maneira, os eventos e interações soam como uma consequência natural das escolhas e ações da protagonista. Como os eventos são contidos nesse microcosmo, enquadrados na perspectiva da protagonista e como isso a afeta, o texto evita generalizações simplórias e foca na complexidade dos sentimentos de Autumn.

Um exemplo é a cena em que a personagem começa a golpear a própria barriga em um esforço desesperado para forçar um aborto espontâneo. Nenhuma palavra é dita sobre esse acontecimento, mas ilustra a necessidade do acesso ao aborto como uma questão de saúde pública, já que sem isso uma pessoa pode simplesmente causar um sério dano ao feto e a si mesma caso se veja presa a uma gestação indesejada.

Sidney Flanigan impressiona com o quanto ela consegue dizer com um gesto, com um olhar. Apesar de Autumn ser uma jovem bastante introspectiva, a atriz nos permite ver o turbilhão de emoções que se passa internamente na garota através dos olhares ou da maneira como ela reage aos outros ao seu redor, a exemplo da cena em que uma assistente social pergunta se ela sofreu algum tipo de abuso e aos poucos Autumn desaba a chorar, deixando subentendido que ela foi violentada e que a gravidez pode ser fruto de abuso. Falo subentendido porque o texto não se importa em explicar a vida ou experiências pregressas da personagem. O que importa aqui é Autumn, a voz, os sentimentos dela diante dos problemas que se impõem a ela independente de como ela tenha chegado (ou sido posta) nessa situação.

Flanigan também constrói uma química bastante sincera com Talia Ryder, que interpreta Skylar. As duas realmente convencem que estamos diante de duas garotas que são amigas há anos, confiam plenamente uma na outra e se conhecem tão bem ao ponto que não precisam falar muito para comunicarem sentimentos complexos uma para a outra. Isso é evidenciado no breve toque de Autumn nos dedos de Skylar enquanto Skylar beija um garoto para conseguir emprestado o dinheiro para voltarem para casa. É um gesto bem pequeno, mas que ilustra o afeto, cuidado e reconhecimento que uma tem pela outra.

É justamente nessa delicadeza, no modo como transmite sentimentos poderosos através de poucas falas e pequenos gestos, que reside a força de Nunca, Raramente, As Vezes, Sempre e a razão pela qual ele é tão bem sucedido em tratar de um tema tão difícil.

 

Nota: 10/10


Trailer

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