segunda-feira, 8 de março de 2021

Rapsódias Revisitadas – Cleo das 5 às 7

 Análise Crítica – Cleo das 5 às 7

Review - Cleo das 5 às 7
Lançado em 1962, Cleo das 5 às 7 é o segundo longa-metragem dirigido pela cineasta Agnes Varda e ajudou a sedimentar a diretora como um nome importante do movimento da nouvelle vague francesa bem como no cinema mundial. Em um espaço dominado por homens (e mesmo hoje ainda é) o filme de Varda toca em questões de existencialismo e também de como a sociedade francesa percebia as mulheres.

A trama é centrada na cantora Florence “Cleo” Victoire (Corinne Marchand) que aguarda o resultado de um exame que lhe dirá se ela tem câncer. Nas horas que antecedem a resposta sobre sua saúde, acompanhamos Cleo conforme ela questiona o que fazer com sua vida e encara a possibilidade da morte.

Se passando quase que em tempo real, a narrativa pondera sobre a vida e as coisas que lhe de dão sentido, mostrando como mesmo em um curto espaço de tempo muita coisa pode acontecer, podemos descobrir sentimentos que não conhecíamos ao nosso respeito, trabalhar ou mesmo agir de maneira fútil, mas que tudo isso significa estar experimentando a vida, as possibilidades que o mundo nos dá.

Como aconteceu com muitas produções da nouvelle vague da época, é filmado em locação, na rua, inclusive com os populares olhando direto para a câmera, registrando a vida da protagonista em suas andanças pela rua e os encontros que acontecem nesse tempo. Apesar de lidar com temas sérios, o medo e a iminência da morte, a trama consegue lidar com essas questões sem soar pesado, mas também sem simplificar ou romantizar demais o que passa pela mente de alguém que experimenta ser confrontada com a própria finitude.

Há aqui uma sólida ponderação sobre o quão assustadora é ter que lidar com a morte, mas também é uma jornada cheia de charme, estilo e momentos de humor. Como a vida, é cheia de altos de baixos, de momentos de felicidade e momentos em que nos perguntamos porque diabos continuamos a existir em um mundo tão problemático e Varda transita por tudo isso com uma naturalidade impressionante.

Por mais que lide com questões filosóficas complexas, Varda nunca soa pretensiosa ou autoindulgente (diferente de alguns diretores da mesma época), construindo uma trama cheia de lirismo e complexidade emocional. Parte dessa complexidade vem também do trabalho de Corinne Marchand e quanto ela nos mostra o turbilhão interno de Claire apenas com olhares e inflexões vocais. Mesmo quando ela parece estar feliz e se divertindo em uma conversa com amigos, vemos em seus olhos como o espectro da morte iminente permanece com ela. O momento em que o filme insere uma montagem rápida com os vários encontros e memórias dela ao longo do dia ajuda a transmitir a sensação de sobrecarga emocional da personagem.

Na verdade, fica evidente que os passeios de Cleo são uma tentativa da personagem se manter distraída do temor do resultado dos exames, algo evidente na cena em que ela ensaia com os compositores e decide parar de cantar no momento em que a letra fala sobre uma mulher que prefere morrer a viver sem o amante, como se as palavras a lembrassem da própria iminência da morte. Esse temor e insegurança da personagem, bem como suas ponderações sua vida ajudam a nos conectar com Cleo, mas Varda não se furta a nos mostrar que ela também é fútil e constantemente mimada pelas pessoas, sempre cercada de espelhos e contemplando a própria aparência, vemos a cantora como alguém relativamente autocentrada.

O material, no entanto, observa essas características de Cleo como um subproduto do modo com o qual a sociedade francesa da época (e muitas sociedades ainda hoje, infelizmente) trata as mulheres, conferindo valor a elas quase que exclusivamente pela aparência física. Ao mostrar a relação de Cleo com os compositores com quem trabalha ou mesmo no breve encontro com seu amante, o filme nos mostra como essas figuras masculinas tratam a protagonista como um bibelô e alguém emocionalmente imatura, cujo comportamento diante da incerteza sobre sua saúde é tratado por esses homens como um exagero intempestivo ou uma mera manobra para criar drama e conseguir atenção.

Cheio de sensibilidade, Cleo das 5 às 7 é um exame poético sobre a vida, a morte e como usamos o tempo que nos é dado.

Trailer


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