A narrativa se baseia na história real de Ross Ulbricht (Nick Robinson), criador do site Silk Road, uma página de comércio eletrônico na deep web que servia de ponto de compra e venda para qualquer substância ilegal. Logicamente a venda de drogas via internet o coloca na mira das autoridades, em especial do agente Nick Bowden (Jason Clarke), um sujeito mentalmente instável que retornou recentemente ao serviço e foi colocado em uma função burocrática no departamento de crimes digitais, mesmo sem ter qualquer intimidade com computadores.
A história tinha potencial para discutir temas como a ineficácia da guerra às drogas ou questões relativas à liberdades individuais, mas, ao invés disso, parece apenas aderir acriticamente aos ideais libertários (não confundir com liberais, que é outra coisa) de seu protagonista. Ross não é um personagem, é uma palestra ambulante sempre falando dos méritos dos ideais libertários, sendo que os argumentos dele, sejam eles sobre economia ou sobre política, são facilmente refutados.
A ideia de que o Estado não pode de maneira nenhuma interferir em liberdades individuais já tinha sido respondida por liberais clássicos como Stuart Mill e o princípio do dano, do mesmo modo as ideias econômicas de sujeitos como Mises já eram consideradas pouco relevantes na época em que foram publicadas e posteriormente noções de que a economia é melhor quando todos agem segundo os próprios interesses foram formalmente refutadas pelo campo econômico. A chamada “dinâmica de Nash” proposta por John Nash (cuja vida foi retratada no filme Uma Mente Brilhante) usa modelos matemáticos a partir da teoria dos jogos e teoria dos grandes números para demonstrar que agir apenas segundo os próprios interesses não é um modelo viável a longo prazo.
É mais complexo do que eu tentei explicar aqui, mas não quero me deter muito nessas questões porque o problema do filme nem são os pontos de vista que o personagem exibe e sim que é tudo exposto de maneira pouco natural. Ross fala o tempo todo como se estivesse palestrando para alguém e não apenas conversando com conhecidos ou a namorada. Ele soa mais como um veículo de exposição de informações do que um sujeito plenamente realizado.
Isso acontece não só em um nível de roteiro, mas também da composição do ator Nick Robinson, cujos maneirismos rígidos e olhar fixo, quase robótico, remetem ao Mark Zuckerberg de Jesse Eisenberg em A Rede Social (2010), no entanto o personagem de Eisenberg tinha muito mais camadas, havia nele uma vulnerabilidade emocional, um claro desejo de se sentir querido e admirado, um afeto genuíno pelo amigo Eduardo Saverin. O Ross de Robinson, tanto por conta do texto expositivo quanto pelo trabalho do ator (provavelmente assim conduzido pelo diretor) não tem qualquer nuance ou qualquer traço de personalidade além de seu discurso libertário.
Do outro lado, o policial interpretado por Jason Clarke não vai além do clichê do policial durão de modos antiquados e disposto a quebrar as regras para conseguir o que quer. O roteiro tenta usar a relação de Nick com a filha para dar a ele alguma motivação compreensível para agir de maneira corrupta, no entanto como isso é pouco desenvolvido, a filha acaba sendo mais uma muleta afetiva de roteiro. Aliás, isso também acontece com Julia (Alexandra Shipp), namorada de Ross, que existe apenas para ser a cônjuge dele, não tendo qualquer motivação ou arco próprio.
Voltando à Nick, o personagem também é prejudicado pelos diálogos expositivos, no qual ele reclama o tempo inteiro da juventude e sua obsessão por computadores e por verem o mundo através de telas. São pontos relativamente válidos a se fazer e poderiam render um bom conflito geracional, mas a maneira como os diálogos dele são estruturados o fazem soar como um tiozão de Whatsapp reclamando da internet, reduzindo-o a uma caricatura. O texto ainda tenta traçar um paralelismo entre os comportamentos obsessivos de Nick e de Ross, mas nunca vai além de apontar essa similaridade entre os dois e não a explora de maneira alguma. O único personagem que desperta o mínimo de interesse é o ajudante de Ross interpretado por Paul Walter Hauser, responsável pelos momentos mais divertidos do filme como um sujeito que passa todo seu tempo chapado diante do computador.
Para além do fato de que os personagens são quase que unicamente constituídos de diálogos expositivos, a narrativa é arrastada, com pouca construção de tensão, suspense ou intriga. Muito disso se deve ao fato de que a trama se estrutura principalmente ao redor de pessoas trocando mensagens em salas de chat, algo que é difícil tornar envolvente. Parte do problema é também que Ross cai muito fácil nos ardis e na pressão que Nick faz sobre ele e assim o tenso jogo de gato e rato que o filme parecia construir nunca se efetiva. A facilidade com que Ross é enganado também depõe contra o retrato que o filme tenta fazer dele de alguém extremamente inteligente.
O enquadramento que o filme faz de Ross é praticamente apologista. Mesmo quando mostra as inevitáveis consequências negativas do site, com as mortes, crimes e drogas perigosas vendidas nele, o texto se apressa em oferecer contra argumentos para essas críticas. Quando Julia chama a atenção de Ross sobre o site dele estar vendendo drogas como crack e metanfetamina, que destroem comunidades pobres, Ross rapidamente responde que se trata de uma exceção, que o público dele são pessoas com formação universitária e alto poder aquisitivo. Do mesmo modo, quando Ross vê a notícia de um jovem que morreu por conta de uma transação no site dele, o filme nem dá tempo para que o personagem e o espectador sintam o peso das consequências das ações dele, rapidamente cortando para depoimentos de clientes falando como o site mudou a vida deles.
A narração final de Ross não deixa qualquer dúvida de que o filme está relativizando de maneira simplória a conduta dele ao nos dar um áudio do personagem falando que criou o site para dar liberdade às pessoas e não imaginava que os indivíduos usariam isso para fazer mal uns aos outros. A fala tenta claramente enquadrar Ross como uma espécie de herói libertário que tentou mudar o mundo, mas foi frustrado pela incompreensão do ser humano, mas, na verdade, o faz soar como um completo imbecil. O sujeito cria um espaço virtual para as pessoas cometerem crimes anonimamente e sem supervisão e fica surpreso quando isso gera consequências ruins? O que ele esperava que aconteceria?
O problema aqui nem é que o filme tente assumir o lado de Ross, afinal um produto artístico é fruto da subjetividade do olhar de seu realizador, não se deve cobrar da arte a isenção que se cobra, por exemplo, do jornalismo. A questão aqui é que o diretor tenta projetar uma impressão de não estar do lado personagem ao mostrar o “outro lado”, no entanto, rapidamente corre para invalidar ou diminuir o impacto de pontos de vista contrários, fundamentalmente tomando o lado de Ross. Seria mais honesto que o filme assumisse que está do lado do protagonista e seus pontos de vista ao invés de forçar uma neutralidade que não se verifica na obra, algo que aconteceu com José Padilha no fraco 7 Dias em Entebbe (2018).
A direção também faz várias escolhas questionáveis em termos de montagem, com vários cortes abruptos entre uma cena e outra ou usando freeze frames para fazer as transições. Tudo isso soa como floreios estilísticos despropositados, jogados à esmo para dar a impressão de que estamos diante de algo visualmente dinâmico quando esses recursos são usados sem necessidade. Normalmente se usa a imagem brevemente congelada para ressaltar alguma ação marcante e fixar isso no espectador, no entanto, em muitos casos que o filme usa freeze frames não há nada de muito marcante acontecendo em termos visuais.
Havia uma história interessante a ser contada em Silk Road: Mercado Clandestino, no
entanto, o resultado final entrega muito pouco a se aproveitar por conta do texto
raso, excessivamente expositivo, personagens inanes, uma trama desprovida de
suspense e escolhas questionáveis de montagem.
Nota: 2/10
Trailer
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