terça-feira, 20 de abril de 2021

Lixo Extraordinário – A Porta da Loucura (Reefer Madness)

 

Crítica – A Porta da Loucura (Reefer Madness)

Review - Reefer Madness
Hoje a nossa coluna é dotada de algum valor de pesquisa histórica sobre cinema. O filme que falaremos hoje, A Porta da Loucura (Reefer Madness), lançado em 1938, é considerado uma das primeiras produções de Hollywood a falar dos "perigos" da maconha. Observar a “denúncia” feita por esse filme com o olhar de hoje rende boas risadas, já que boa parte do discurso contrário à maconha, feito para assustar as pessoas a se manterem distantes dela, se baseia em ideias já refutadas sobre a substância e em um sensacionalismo tão exagerado que torna tudo hilário. É importante destacar que existem duas versões deste filme, a versão original em preto-e-branco lançada em 1936 e uma versão colorizada (o mesmo filme, só que com cor) dele que foi lançada décadas depois.

A abordagem sensacionalista já se faz presente no letreiro inicial, que avisa que apesar de ser uma obra de ficção, o filme visa educar pais e jovens para o perigo real da droga que está destruindo comunidades, a maconha, que faz as pessoas ficarem em um estado de completa insanidade que conduz a atos de violência. A primeira cena mostra uma reunião da associação de pais no qual um palestrante alerta sobre os perigos das drogas sendo traficadas para os Estados Unidos, com a montagem cortando para imagens que deveriam ilustrar como essas drogas são escondidas em livros, broches ou solas de sapato, mas a maioria dessas drogas nem parecem drogas, apenas grandes retângulos brancos que mais lembram barras de sabão. Claro, alguém poderia dizer que essas não são as drogas em si, mas os pacotes em que são transportadas, no entanto, quando vimos drogas transportadas em retângulos brancos perfeitos?

Após a cena da reunião, o filme entra em sua narrativa principal ao mostrar Jack (Carleton Young) e Mae (Thelma White), dois traficantes cujo trabalho é “corromper” os jovens e deixá-los viciados em maconha, algo que, segundo o filme leva à morte. Em mais de uma ocasião o filme apresenta diálogos falando de pessoas que morreram por overdose de maconha ou que o uso prolongado colocou uma pessoa em um estado de irracionalidade e violência tão grandes que o sujeito assassinou a vítima a machadadas. São informações que pareciam chocantes na década de 1930, mas que soam ridículas hoje, afinal, quantos episódios de overdose de maconha ou de pessoas cometendo atos de violência por conta apenas da maconha vocês já ouviram falar?

Para tentar construir uma oposição chocante entre quem fuma maconha e quem não fuma, a narrativa recorre a construções extremamente caricatas. O casal Mary (Dorothy Short) e Bill (Kenneth Craig), é inicialmente inocente, sentando-se na casa de Mary para recitar passagens Romeu e Julieta de Shakespeare um para o outro. Depois que fumam maconha, no entanto, suas vidas se destroem. Ao experimentar maconha, Bill começa a dançar descontroladamente em um estado de euforia, posteriormente indo para cama com outra garota do local. Toda a cena é feita para sugerir como a maconha induz a condutas “imorais”, uma vez que nos anos de 1930 fazer sexo fora do casamento não era conduta de pessoas “de bem” (embora eles fizessem mesmo assim, apenas não admitiam) e assim a maconha é colocada aqui como culpada pela lascívia dos adolescentes.

Em outra cena, ao tentar dirigir sob efeito de maconha, Jimmy (Warren McCallum) não consegue conduzir direito o automóvel e atropela uma pessoa. A cena toda não faz nenhum sentido, já que esse é um efeito mais compatível com o álcool (sendo que o personagem não bebeu) do que da maconha. Afinal, quantos acidentes de carro causados por maconha vocês conhecem ou já ouviram falar?

Durante todo filme são apresentadas cenas que deveriam nos mostrar os efeitos nocivos da maconha, porém o que é apresentado ao espectador parece efeito de qualquer outra droga menos da maconha. Em uma cena vemos um personagem tocando piano com muita energia e olhos arregalados apenas para descobrirmos que isso acontece por ele estar sob efeito de maconha, sendo que essa conduta faria mais sentido se ele tivesse sob efeito de cocaína ou anfetaminas.

O cúmulo do absurdo é o segmento final, que envolve Mary indo para o “antro” de Jack e Mae fumar maconha. Sob efeito da droga, Mary e Jack começam a se agarrar, como que para mostrar que a droga deixa as pessoas lascivas. Mary, no entanto, rejeita os esforços mais agressivos de Jack, que não gosta da atitude da garota e tenta estuprá-la. Mais uma vez é uma informação que soa exagerada, afinal quantas vezes já vimos alguém usar maconha para dopar alguém para tentar sexo?

Normalmente abusadores usam álcool ou outro tipo de droga, mas não maconha (e esse filme faz questão de dizer o tempo todo que fala sobre maconha). Do mesmo modo, quantos estupros cometidos por pessoas sob efeito de maconha acontecem por aí? Não parece ser um dado que encontramos o tempo todo. Não estou aqui dizendo que não há qualquer efeito negativo causado pela maconha, não tenho formação suficiente para fazer esse tipo de afirmação, no entanto, aponto para o fato de que a denúncia do filme se apoia em situações específicas que praticamente não encontram qualquer eco na realidade.

Bill chega no local e vê Jack em cima de Mary, iniciando uma luta contra o traficante, que saca uma arma. Durante a luta corporal entre Bill e Jack a arma dispara, matando Mary. Bill fica desacordado e Jack coloca a arma nas mãos de Bill para que ele pense que matou Mary ao ficar descontrolado por conta da maconha. Bill é preso pelo crime e quase é condenado, mas Mae tem um acesso de culpa e confessa às autoridades a armação de Jack e o fato dele ser o verdadeiro culpado. A culpa de Mae é tão grande que após confessar o acontecido ela comete suicídio se jogando da janela do fórum, um ação feita para demonstrar que os pecados dela são tão grandes e irredimíveis que não há destino ou punição possível para ela além de morte.

É interessante assistir A Porta da Loucura hoje e ver como boa parte da retórica anti-maconha é baseada em sensos-comuns exagerados e argumentos desonestos sobre os efeitos reais da droga. Sabendo o que sabemos hoje, toda a denúncia e seriedade do filme do filme descamba para a comédia involuntária. Inclusive, o filme ganhou um remake/paródia em 2005 intitulado A Loucura de Mary Juana que se estrutura como um musical cômico.


Trailer

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