sexta-feira, 28 de maio de 2021

Rapsódias Revisitadas – Tony Manero

 

Análise Crítica – Tony Manero

Review – Tony Manero
Misturar ditadura militar chilena com o icônico personagem de John Travolta em Os Embalos de Sábado à Noite (1977) parece algo que não faz sentido. Afinal, que relações podem ser estabelecidas entre esse personagem dançarino e um período brutal da história latino-americana? Para o diretor Pablo Larraín, responsável por este Tony Manero, a resposta é que se pode usar o personagem de Travolta para fazer uma poderosa metáfora sobre a ditadura chilena.

A trama se passa durante a ditadura militar chilena e é centrada em Raúl (Alfredo Castro), um pequeno criminoso de meia-idade que vive na periferia de Santiago e é completamente obcecado pelo filme Os Embalos de Sábado à Noite. Raúl deseja participar de um concurso de sósias de Tony Manero em um programa de televisão local e para isso quer construir uma performance e uma caracterização mais parecida possível com o personagem de Travolta.

A obsessão de Raúl com o filme o torna extremamente violento contra qualquer um que se coloque em seu caminho. Isso fica evidente, por exemplo, quando o cinema em que ele vai repetidas vezes assistir o filme de John Travolta tira a película de cartaz e a substitui por Grease: Nos Tempos da Brilhantina (1978). Quando isso acontece, Raúl vai até a sala de projeção e brutalmente espanca o projecionista. Em outro momento, o protagonista segue uma idosa até a casa dela para matá-la e roubar sua televisão a cores.

Raúl não é nem de longe um personagem simpático, no entanto, há algo de fascinante em ver esse sociopata se entregar a uma fantasia ingênua de querer ser como Tony Manero, dançando alegremente de cueca diante do espelho como se não tivesse matado várias pessoas. Seria possível entender esse fascínio do protagonista como uma tentativa de escapar da realidade bruta em que vive.

A repressão da ditadura chilena raramente é explicitada, mas está sempre às bordas do quadro nos ruídos de sirene nas ruas que fazem o protagonista se esconder rapidamente sempre que as ouve ou nos cadáveres de dissidentes que Raúl rouba ocasionalmente. Raúl também é sexualmente impotente, com as cenas em que ele tenta fazer sexo (e falhando) sendo constrangedoramente incômodas e desagradáveis de assistir. É como se o personagem pudesse fugir de toda essa realidade de violência e emasculação quando se transforma em Tony Manero.

A obsessão de Raúl também pode ser lida como uma metáfora do próprio regime ditatorial chileno, que comete crimes violentos, mas age para projetar uma imagem que convoque glamour e admiração como que para fazer as pessoas não perceberem o sangue que tem nas mãos. De outra maneira, também podemos entender a jornada do protagonista como uma ponderação sobre dominação cultural e colonialismo. Sabemos que os Estados Unidos financiaram o golpe no Chile (e em outros países da América Latina).

Deste modo, o fascínio de Raúl por um personagem tão simbólico da cultura estadunidense representa o oprimido se identificar com o opressor e querer, ele próprio, se tornar um opressor perpetuando assim a violência do opressor em uma espécie de neocolonialismo no qual a dominação não vem por ocupação física, mas por ocupar os espaços da cultura. A violência perpetrada por Raúl para manter suas fantasias de pé seria justamente fruto dessa identificação com o opressor, perpetuando o ciclo de violência que essas metrópoles neocoloniais cometem contra os países sob seu julgo.

Tony Manero traz, portanto, um olhar sombrio para a vida durante a ditadura militar chilena, ponderando o papel produção cultural nesse processo.


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