segunda-feira, 28 de junho de 2021

Crítica – First Cow: A Primeira Vaca da América

 

Análise Crítica – First Cow: A Primeira Vaca da América

Review – First Cow: A Primeira Vaca da América
De certa forma eu poderia dizer que este First Cow: A Primeira Vaca da América é um western. Pode parecer estranho usar esse gênero para falar de uma história sobre um padeiro que faz doces com leite roubado, mas a narrativa traz muitos elementos típicos do western desde sua ambientação durante a expansão para o oeste dos EUA (embora aqui focado nas áreas mais noroeste ao invés das regiões mais ao sudoeste) a temas como civilização versus barbárie e os mitos fundadores da sociedade do país, em especial a ideia de meritocracia e esforço individual.

A trama é centrada em Cookie (John Magaro), um padeiro de formação que acompanha um grupo de caçadores de pele no norte do Oregon para tentar fazer dinheiro com o comércio de peles durante a expansão ao oeste dos Estados Unidos. Durante a viagem ele conhece o chinês King Liu (Orion Lee) e ambos acabam se tornando amigos. Quando King descobre o talento de Cookie para fazer doces, ele sugere ao amigo que roubem leite da vaca (a primeira e única da região) do chefe do entreposto comercial em que moram para fazerem doces e venderem a preço alto já que ninguém ali seria capaz de vender algo semelhante.

A narrativa demora um pouco de engrenar e chegar nos seus pontos principais sobre civilização e capitalismo, mas se torna verdadeiramente envolvente uma vez que chega nesses temas. Ao mostrar esses dois amigos construindo um negócio com meios questionáveis, a trama tem muito a dizer sobre o ideal de sucesso financeiro que faz parte da identidade cultural dos Estados Unidos. Não importam os meios, o que importa é produzir algo que as pessoas estejam dispostas a pagar muito dinheiro. A rápida evolução do negócio, que começa com alguns poucos curiosos e logo passa a aglomerar longas filas enquanto as pessoas pedem que ele faça mais doces ajuda a entender a noção de controlar a demanda para manter o público interessado e até disposto a pagar mais caro, algo que muitas empresas de tecnologia fazem ainda hoje.

Do mesmo modo, o fato de que para obterem sucesso eles precisam roubar de outra pessoa ilustra a natureza desigual e predatória do capitalismo. Ou seja, a menos já nasça com dinheiro ou recorra a um expediente ilegal é muito difícil ascender socialmente dentro da lógica de livre mercado. Além disso, deixa claro é para prosperar é preciso tirar algo do outro e tomá-lo para si, o que torna o sistema inerentemente desigual.

A noção de que é preciso tomar à força aquilo que se deseja também mostra a dimensão selvagem e predatória do desenvolvimento da sociedade estadunidense. Uma expansão rumo ao oeste que prometia fortuna aos audazes o suficiente para pegarem essa fortuna para si, mas isso implica em abandonar a civilidade e recorrer à brutalidade ou ao banditismo (como é o caso aqui). Ao mesmo tempo, a narrativa mostra como essa sociedade é fundamentada no principio da manutenção da propriedade privada que deve ser protegida acima de tudo, o que faz a vida humana valer menos que a propriedade, já que o chefe Factor (Toby Jones) não tem pudor em mandar matar quem lhe roubou.

O chefe também demonstra que nessa sociedade a importância e o valor das coisas está no potencial de gerar riqueza para quem possui e que todas as ações precisam ter a geração de valor como principal métrica. Isso fica evidente na conversa que o chefe tem com um capitão em que discutem o número ideal de chibatadas a dar em um escravo como punição, ponderando que talvez dar chibatadas o suficiente para diminuir o rendimento no trabalho do torturado valha a pena se isso fizer os demais se empenharem mais. Ou seja, a dureza ou crueldade da punição é também pensada sob a métrica do que gera mais lucro.

Essa história, no entanto, não é apenas sobre lucro, é também sobre a amizade de dois sujeitos que se sentem perdidos e isolados num mundo em que parecem não se encaixar e encontram compreensão um no outro. A noção de que amizade e um senso de comunidade são essenciais para a vida humana aparece já no letreiro inicial que traz um verso de William Blake no qual ele compara a amizade humana ao que um ninho é para um ave. A importância da comunidade na vida humana em oposição ao universo bruto em que vivem entra justamente nas oposições entre civilização e barbárie que é tão cara ao western.

Desta maneira, First Cow: A Primeira Vaca da América é uma contundente reflexão sobre o processo civilizatório dos Estados Unidos e as estruturas socioeconômicas que sustentam essa sociedade.

 

Nota: 9/10


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