Dirigido e escrito por Brian Helgeland, que vinha de uma vitória do Oscar melhor roteiro adaptado por Los Angeles: Cidade Probida (1997), a trama se passa na Inglaterra medieval e segue o jovem escudeiro William (Heath Ledger), que toma o lugar de seu suserano falecido e resolve participar das competições de justa da nobreza em busca de glória e dinheiro como cavaleiro. Ao lado dele estão os escudeiros Wat (Alan Tudyk) e Roland (Mark Addy), o arauto Geoffrey Saucer (Paul Bettany) e a ferreira Kate (Laura Fraser). Em sua jornada rumo à glória William encontra um rival no conde Adhemar (Rufus Sewell) e se apaixona pela bela Jocelyn (Shannyn Sossamon).
Recentemente a série Bridgerton virou febre ao apresentar a nobreza elisabetana com canções e coreografias contemporâneas, mas vinte anos atrás Coração de Cavaleiro já fazia exatamente isso. Ao invés de buscar fidelidade histórica, a representação do esporte da justa era algo que misturava o medieval e o contemporâneo, com as competições acontecendo em arenas que remetiam aos estádios esportivos modernos e a torcida se comportando como uma torcida contemporânea, com direto a “ola” nas arquibancadas e tudo mais.
Esse espírito de contemporaneidade também está presente na paisagem musical do filme, primordialmente composta por canções não originais, com a maioria sendo da década de 70, como Low Rider, Taking Care of Business, The Boys Are Back in Town ou a versão de Eric Clapton para Further on Up the Road. A ideia ao usar essas canções ao invés de uma trilha com instrumentos e ritmos mais próximos à época em que a trama se passa parece ser a de evocar uma certa nostalgia por tempos passado e, ao mesmo tempo em que insere uma sensibilidade moderna a esse passado remoto que o filme tenta construir.
Isso fica evidente já na cena inicial com uma torcida batendo palmas ao som de We Will Rock You do Queen, algo que torcidas de esportes contemporâneos fazem. Do mesmo modo, na cena do baile uma dança e música medievais são rapidamente substituídas por Golden Years de David Bowie e a coreografia imediatamente se torna mais contemporânea, como se os personagens estivessem cientes dessa canção que toca extradiegeticamente.
A estratégia no uso dessas canções é a de nos fazer entender esse universo sem precisar nos explicar através de diálogos. As canções aproximam William e os outros cavaleiros de atletas ou celebridades contemporâneas e os duelos de justa seriam como partidas de futebol ou lutas de boxe. Essa noção fica ainda mais evidente pela maneira como o filme usa os arautos dos cavaleiros. Chaucer (baseado na figura real do escritor Geoffrey Chaucer, autor de Os Contos da Cantuária, uma das mais importantes peças da literatura britânica) narra as entradas de William com uma prosa elisabetana e uma construção de hype similar a um locutor atual, funcionando como uma espécie de Bruce Buffer medieval. Assim, entendemos o lugar que esses personagens ocupam na sociedade da época entre outras coisas pelo modo como a música alude e traça paralelismos com situações e iconografias contemporâneas.
A ferreira Kate é outro ponto em que a modernidade e fidelidade histórica se encontram. De início a personagem parece uma concessão contemporânea, trazendo uma mulher em uma função tipicamente masculina na época da trama para transmitir ideais de igualdade de gênero. Embora a construção da personagem de fato atenda a esse olhar mais atual, ela também é fundamentada em uma fidelidade histórica, já que na época viúvas de ferreiros eram admitidas nas guildas da função para poderem se sustentar depois do falecimento dos maridos. Essas ferreiras, entretanto só podiam realizar reparos ou fazer utensílios simples como ferraduras, enquanto que no filme Kate é hábil na construção de armas e armaduras, com sua assinatura remetendo ao logo da marca esportiva Nike, mais uma instancia de paralelismo que o filme faz com atletas contemporâneos.
Heath Ledger traz carisma e charme a William, um sujeito relativamente chucro, mas de bom coração e cujo senso de honra o acaba salvando no final quando sua fraude de fingir ser nobre é exposta. As interações entre ele sua equipe são divertidas e cheias de diálogos mordazes, enquanto que o romance com Jocelyn é marcado por declarações de amor espirituosos e também trocas de farpas ferinas.
Jocelyn também tem uma certa sensibilidade contemporânea, constantemente rejeitando ser tratada como troféu por Adhemar ou William, chamando a atenção deles para o machismo de suas condutas. Por outro lado a personagem não tem nenhuma outra função a desempenhar na trama a não ser a de interesse romântico, não fazendo qualquer coisa além de gravitar em torno desses personagens masculinos. Rufus Sewell faz de Adhemar um vilão que dá gosto em odiar por conta de sua postura pedante, elitista e inescrupulosa, constantemente se valendo de ardis escusos para conseguir o que quer, nos fazendo torcer ainda mais pela vitória do protagonista. Sewell se sai tão bem que é curioso que ele quase não tenha conseguido o papel, que ia para Daniel Craig, mas o diretor defendeu a escalação de Sewell achando que os cabelos pretos do ator faziam um bom contraste com as madeixas loiras de Ledger.
Com ação, romance e humor, Coração de Cavaleiro é uma envolvente
aventura à moda antiga movida por sensibilidades contemporâneas.
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