Na trama, o coronel Guile (Jean-Claude Van Damme) lidera as Nações Aliadas (provavelmente as Nações Unidas não liberaram usar a marca deles nesse fiasco) em uma investida conjunta contra o ditador M.Bison (Raul Julia) e seus planos de dominação mundial. É um fiapo de trama e não haveria qualquer problema nisso já que o jogo não é exatamente um primor narrativo, mas se espera que ao menos isso resulte em algo divertido, mas não é o caso.
A primeira coisa que decepcionou meu eu infantil do passado foi o quão distantes esses personagens eram dos games. Chun-Li (Ming-Na) tinha se transformado em uma repórter ao invés de uma detetive da Interpol. O guru indiano Dhalsim (Roshan Seth) virou um geneticista. Além de não ter qualquer mínimo resquício de relação com o material original, os personagens são unidimensionais e mal desenvolvidos, já que praticamente todos os dezesseis lutadores de Super Street Fighter II estão presentes (a única exceção é Fei Long) e, logicamente, não há espaço para tanta gente em cem minutos de filme.
Apesar disso eu tinha a esperança de que quando começassem as lutas tudo ia se encaixar. Veríamos os personagens usando seus golpes dos jogos em combates grandiosos e perdoaríamos os outros defeitos. Isso, claro, nunca aconteceu. As lutas são genéricas, sem personalidade, longe de evocar a empolgação dos jogos. Como puderam errar nisso? Só muitos anos depois, pesquisando sobre a produção, que descobri o motivo.
Parte das razões das lutas não apresentarem movimentos remotamente parecidos vem de problemas de bastidores. Uma reportagem longa de 2018 do The Guardian narra como a Capcom impôs que o diretor e roteirista Steven de Souza usasse praticamente todos os personagens ao invés de focar cerca de seis ou sete como de Souza queria. Além disso, foi exigido astros de peso para os papéis de Guile e Bison, com as contratações de Van Damme e Raul Julia consumiram uma boa parte do pouco orçamento, o que deixou a produção sem recursos para pagar o treinamento de luta do elenco antes das filmagens iniciarem.
Para contornar o problema, de Souza resolveu estruturar o cronograma de filmagens priorizando as cenas com diálogos e deixando as sequências de luta para o final das filmagens. Assim, a cada dia os atores que não estivessem filmando estariam treinando para as cenas de luta. Isso daria tempo para o elenco e os coreógrafos planejarem e ensaiarem as lutas. Esses planos não se concretizaram por conta dos problemas de saúde de Raul Julia.
Julia se apresentou ao set recém saído de um tratamento de câncer (ele morreu pouco tempo depois, deixando Street Fighter como seu último filme) , então ele estava muito magro e abatido, distante da presença imponente que um vilão como Bison necessitava. Ele precisava ganhar peso, então o diretor inverteu o plano original. As cenas de diálogo foram deixadas para depois, esperando Raul Julia se recuperar fisicamente para ser intimidador como Bison, e as cenas de ação foram filmadas primeiro, sem o devido tempo para que o elenco treinasse ou ensaiasse coreografias de luta. Os coreógrafos de luta sequer tiveram tempo para conhecer o material e entenderem os diferentes estilos de luta de cada personagem, o que resultou em uma forma geral para todos. Toda a ação, portanto, foi feita de improviso, na correria, então não é surpresa que o resultado tenha sido tão desastroso.
A produção também enfrentou outros problemas, como a dificuldade de lidar com o astro Van Damme, que, segundo declarações dos envolvidos na produção, constantemente se apresentava no set completamente drogado, sob efeito de cocaína (o público brasileiro já imaginava que o astro tinha esses hábitos desde o dia em que ele apareceu alterado encoxando a cantora Gretchen ao vivo no Domingo Legal), o que resultava em diárias de gravação pouco produtivas ou com longos atrasos por parte do ator. É visível no filme o estado alterado do astro, tropeçando nas palavras e mal conseguindo falar. Van Damme sequer se esforça para fazer um sotaque estadunidense, mantendo seu sotaque franco-belga, transformando Guile no militar patriota estadunidense mais francês da história do cinema, o que não faz o menor sentido para o personagem.
Atores como Wes Studi, que fazia Sagat, ou Ming-Na tentam fazer o possível com o material que tem em mãos, mas não salvam seus personagens do péssimo texto. O único destaque é Raul Julia como Bison. Tendo aceitado o papel por insistência dos filhos, Julia dá tudo de si como o vilão, trazendo uma intensa alegria maligna para o personagem. O Bison de Julia é um ditador cruel e tem plena ciência de sua própria natureza maligna, diferente de outros vilões que se acham os heróis de sua própria história, Bison sabe que é mau e tem uma felicidade sádica com isso. As melhores cenas e diálogos do filme pertencem a ele, como o famoso “o dia em que Bison invadiu sua vila foi o mais importante da sua vida, mas para mim era só uma terça-feira”. A fala reflete a natureza casual com a qual Bison encara sua conduta genocida, o júbilo que ele tem com a própria crueldade, ao mesmo tempo que ressalta a dimensão megalômana do personagem. São esses poucos momentos em que há uma mínima parcela de entretenimento e tudo é graças a Raul Julia.
Logicamente isso não é o bastante
para salvar o desastre que é Street
Fighter: A Última Batalha, com sua trama bagunçada e péssimas cenas de
ação.
Trailer
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