sexta-feira, 2 de julho de 2021

Rapsódias Revisitadas – Justiça

 

Análise Crítica – Justiça

Review – Justiça
Lançado em 2004, o documentário Justiça tenta fazer um retrato amplo do sistema de justiça criminal brasileiro acompanhando o cotidiano de acusados, juízes, defensores públicos e suas respectivas famílias. Todo filmado com um viés de documentário observativo, a câmera da diretora Maria Augusta Ramos funciona como uma proverbial “mosca na parede”, observando a situação, sem, no entanto, interagir com os sujeitos filmados ou fazer sua presença ser vista ou ouvida ao longo do filme. Dessa postura também decorrem poucas intervenções de pós-produção, sem música extra-diegética, sem narrações e visualmente a única intervenção são algumas cartelas de texto com o nome dos personagens principais.

É um estilo derivado do movimento do cinema direto estadunidense da década de 1960 encabeçado por realizadores como os irmãos Maysles ou D.A Pennebeker em filmes como Bob Dylan: Don’t Look Back (1967) ou Caixeiro Viajante (1969). A ideia por trás desse modo de fazer documentários buscava intervir o mínimo possível na realidade filmada, mostrando esses trechos do mundo real tal qual aconteceram, nos fazendo ver a vida das pessoas no momento em que elas a vivem.

Em Justiça especificamente imagino que muito do estilo vem do próprio objeto filmado, já que boa parte das cenas se passam em salas de audiência e diante de todo o protocolo jurídico não há muito o que fazer além de observar. A abordagem observativa, no entanto, se estende nas cenas para além do tribunal, quando a cineasta passa a acompanhar o cotidiano das pessoas filmadas, a vida das famílias dos presos, o cotidiano dos presos nos centros de detenção e dos funcionários do judiciário e suas famílias.

Por conta dessa metodologia observativa, o filme evita julgamentos fáceis sobre os detentos ou o judiciário. A diretora nunca dos dá uma interpretação mastigada a respeito daquelas pessoas, se deveríamos considerá-las culpadas, inocentes, vítimas das circunstâncias, se os juízes são justos ou se são excessivamente punitivistas. O filme exibe a situação para que nós, espectadores, avaliemos por nós mesmos a situação e façamos nosso próprio juízo sobre o funcionamento do sistema criminal brasileiro.

Logicamente, essa postura de não intervenção não significa uma neutralidade plena, já que a realizadora precisa fazer escolhas em relação ao que vai ou não para o corte final e essas decisões inevitavelmente são fruto da subjetividade e preferência de quem as faz. Assim, a montagem opõe a vida humilde das famílias dos acusados com o cotidiano de classe média para alta de defensores públicos e juízes, deixando claro que há um abismo de classe entre quem integra o judiciário e as pessoas que são julgadas por ele.

Isso é explicitado pela fala de uma defensora pública que lamenta a postura punitivista dos promotores dizendo que o alto número de prisões e encarceramento pouco faz para diminuir a criminalidade já que pequenos criminosos e pessoas pobres são a grande maioria das pessoas presas. As imagens do centro de detenção revelam as condições aos quais os presos são submetidos, com celas superlotadas que obrigam os detidos a passarem quase o dia todo em pé (ao mostrar a saída de um dos personagens da detenção a câmera foca nos pés inchados do sujeito) e péssimas condições de higiene.

Outra escolha significativa são os momentos fora do tribunal que o filme escolhe mostrar de uma das juízas que acompanha durante o filme. Ela aparece em dois momentos fora da audiência. No primeiro, dentro de seu gabinete, a juíza celebra a promoção para desembargadora, comenta sobre a data da cerimônia e pensa no que fará com sua antiga capa de juíza. A segunda é a pomposa cerimônia de posse como desembargadora. Essas cenas mostram um judiciário mais preocupado com status, homenagens e progressões de carreira do que com o trabalho que realizam. O contraste entre essas imagens e o cotidiano pobre da maioria dos julgados salienta ainda mais o abismo de classe que existe no nosso sistema de justiça.

Com essa construção de documentário observacional, Justiça apresenta um olhar amplo sobre o funcionamento do sistema de justiça criminal brasileira e como esse sistema afeta as vidas dos envolvidos.


Trailer

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