A produção dos filmes que narram o assassinato brutal cometido por Suzane Von Richthofen e Daniel Cravinhos não teve um percurso fácil para chegar às telas. Cercado de controvérsia por contar a história de um crime real que chocou o Brasil, a produção chegou a ser falsamente acusada de estar dando dinheiro para a patricida (Suzane não recebeu nada e o filme é baseado no livro de Ilana Casoy). A decisão de dividir a história em dois filmes (A Menina Que Matou os Pais e O Menino Que Matou Meus Pais) também teve sua parcela de controvérsia, com muitos achando que era um expediente para vender mais ingressos e não necessariamente traçar um panorama mais amplo. Pois bem, agora os dois filmes estão disponíveis em streaming e é possível conferi-los.
Como são experiências “complementares” (explicarei as aspas mais adiante) farei um texto só sobre os dois filmes. Primeiro vou falar de maneira geral sobre ambos, depois entrarei em especificidades sobre cada um, já que são experiências relativamente diferentes. A Menina Que Matou os Pais se baseia na versão de Daniel Cravinhos (Leonardo Bittencourt) sobre os fatos, fazendo a responsabilidade do crime cair mais sobre Suzane (Carla Diaz), enquanto que O Menino Que Matou Meus Pais apresenta a versão de Suzane, incriminando mais Daniel.
Ambos foram baseados principalmente nos depoimentos dos dois durante o julgamento. Parece uma ótima escolha, se ater ao que eles disseram em juízo, não é? Bem, não. Primeiro se ater a essas falas dá pouco espaço para que o filme tente apresentar uma tese ou interpretação própria sobre esses dois personagens, se prendendo demais aos fatos que eles narraram sem um esforço de compreender o que havia por trás deste discurso, o que se passava internamente com essas pessoas. Nesse sentido, a produção falha em dar ao espectador qualquer novo olhar sobre o caso, repetindo informações que podem ser obtidas com uma breve pesquisa na internet.
Outro problema é que apesar dos depoimentos de ambos estarem muitas vezes em oposição, a falta de qualquer olhar externo a ambos permitem que informações dadas pelos dois passem sem serem questionadas. O melhor exemplo são as múltiplas falas sobre a violência física e supostos abusos sexuais cometidos pelo pai de Suzane, discurso que foi refutado por várias outras testemunhas, incluindo o irmão da própria Suzane. Enquanto que outros personagens ao longo das duas versões acabam exibindo alguma nuance, algum grau de humanidade, o casal Richthofen é tratado de modo unidimensional (e por vezes caricato), como preconceituosos, hipócritas e abusivos.
Com isso, o filme acaba permitindo a leitura de que havia algo de justo nas ações de Suzane ou dos Cravinhos, que estavam reagindo a um agressor, quando isso pode simplesmente ser falso. É irresponsável e cruel com essas duas pessoas que não podem se defender ou proteger a própria reputação e pode ser entendido como culpabilização das vítimas.
A adesão excessiva a apenas as versões de Suzane e Daniel também deixam as tramas míopes em relação aos outros eventos, como a investigação que levou à captura de Suzane e Daniel e o modo como, apesar do plano aparentemente esperto que eles exibem construir, a polícia já desconfiava deles desde o início. Já nos estágios iniciais da investigação as autoridades acharam suspeito que eles tivessem guardado a nota fiscal do motel, afinal quem guarda nota de motel? É um evento que serviria para ver esses personagens sobre outro prisma dando mais alguma complexidade aos eventos ao invés do olhar simplório do relato parcial dos dois envolvidos que nem mesmo com a soma da complementaridade deles chega a um panorama razoavelmente amplo do caso.
Ambos filmes sofrem com alguns excessos dramatúrgicos, como a pesada maquiagem colocada em Suzane quando ela está sob efeito de drogas que dá a personagem uma aparência tão caricatural que atrapalha a composição deliberada e bem construída de Carla Diaz. O uso de música é por vezes muito intrusivo, invadindo as cenas de maneira forçada e as vezes muito óbvia, como o reggae que toca quando Suzane usa maconha em O Menino Que Matou Meus Pais.
Outro problema é que os dois
filmes tem algumas cenas repetidas ou com pouquíssimas variações, em especial
nos primeiros minutos. Isso torna a experiência de ver os longas em algo
cansativo e fica a impressão de que seria melhor um único filme alternando
entre as duas perspectivas, com os depoimentos se interrompendo e se
entrecortando, para uma experiência mais concisa e menos cansativa. As
produções falham em justificar a divisão como uma necessidade dramatúrgica, não entregando plenamente a complementaridade prometida.
Dito isto, vou falar um pouco da especificidade de cada um.
O Menino Que Matou Meus Pais
Carla Diaz, no entanto, é esperta o bastante para dar um ar excessivamente encenado e artificial à postura de mocinha ingênua de Suzane, dando a entender que tudo aquilo não passa de fingimento da garota. É a única instância em que o filme demonstra exibir uma leitura própria sobre os fatos narrados, já que, de resto, é tudo muito impessoal.
Por outro lado, o trabalho de Diaz é sabotado pelo texto raso e por algumas escolhas pouco ideais de encenação, como os vários momentos em que Suzane abraça os pais e dá um sorriso sonso olhando na direção da câmera, só faltando piscar para espectador. As cenas em que Suzane fuma maconha ao lado de Daniel são tão caricatas e cheias de um moralismo antiquado a respeito da substância que parecem saídas de alguma campanha antidrogas de trinta anos atrás ou de algo como A Porta da Loucura (1938).
Como o texto foi baseado
principalmente nas falas de Suzane nos autos, seria possível inferir que essas
incoerências, impessoalidade e superficialidade se devem à própria narrativa de
Suzane em seu depoimento, fruto de: a) ela estar mentindo ou b) ela ser uma
psicopata que não entende emoções e comportamento humano. Talvez até uma
mistura dessas duas possibilidades. Isso só demonstra o equívoco da escolha em
se basear principalmente nesses depoimentos, já que o filme não é um
documentário e o que está sendo narrado não consegue render uma história. O
resultado é um produto arrastado, pouco envolvente, em que muito pouco de
interessante acontece e não nos oferece nenhum entendimento melhor sobre
essas pessoas.
Nota: 3/10
A Menina Que Matou os Pais
Se no outro filme os atores eram limitados pela construção textual simplória dos personagens, aqui eles tem mais possibilidade de demonstrar um maior alcance. Mais uma vez é Carla Diaz que se destaca ao construir Suzane com grande dubiedade. Uma garota que posa de moça na frente dos pais, mas que se comporta como uma patricinha irresponsável quando está com amigos e o namorado. Assim como no outro, há um exagero deliberado nos momentos em que Suzane tenta se colocar como vítima dos pais para Daniel, como se tudo não passasse de um fingimento da garota para convencer o namorado de que todos os problemas deles vinham dos pais dela e envolvê-lo no eventual crime. Aqui Suzane soa de maneira crível como uma psicopata, alguém que molda sua conduta e discurso ao que as pessoas a sua volta querem ouvir para manipulá-los com habilidade.
Alguns excessos ainda estão
presentes aqui, como a pesada maquiagem de “dark Suzane” que Carla Diaz usa em
muitos momentos, mas ao menos os personagens tem alguma ambiguidade, passam por
mudanças se transformam. Até mesmo alguns coadjuvantes como Cristian (Allan
Souza Lima) tem mais humanidade (no anterior Cristian é reduzido a um
maloqueiro histérico). Os pais de Suzane, porém, são ainda mais monstruosos que
na outra versão e em nenhuma das duas há qualquer elemento ou característica
positiva colocada em ambas, o que é muito estranho considerando que eles são as
vítimas da história. Mesmo sendo em geral melhor construído, o filme também
nunca consegue ir além do que já foi noticiado e era sabido sobre o caso e
qualquer um que ainda lembre da história não vai ter novos insights sobre esses eventos.
Nota: 5/10
Trailer
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