O filme conta a história real de Carlos Marighella (Seu Jorge), a partir da biografia escrita por Mário Magalhães. Marighella foi um intelectual, político e deputado que iniciou a Aliança Libertadora Nacional (ALN), grupo de luta armada contra a ditadura militar brasileira. As ações de Marighella e da ALN o tornam alvo do governo militar, que despacha o delegado Lúcio (Bruno Gagliasso) para detê-lo.
Filmes sobre ditadura muitas vezes evitavam mostrar de maneira muito explícita a violência das torturas e das ações dos agentes do governo contra cidadãos brasileiros, talvez por respeito às vítimas ou talvez para evitar reviver os traumas daqueles que assistiam. Hoje, no entanto, temos gerações que não viveram o período ou não tem entes queridos que viveram e exibir o horror das torturas, da violência do pau de arara da maneira crua como Moura faz aqui. É um duro lembrete sobre a opressão do regime militar e também reforça a motivação de Marighella e seus companheiros a tentarem uma revolução contra o regime. Afinal, como combater tamanho autoritarismo? Como enfrentar um regime que sufoca brutalmente qualquer oposição?
O trabalho de Seu Jorge é ótimo em mostrar Marighella como um sujeito complexo. Alguém que é levado a um extremo e se torna um terrorista implacável com os inimigos, mas que também era um pai amoroso, um poeta sensível e alguém que se importava com os companheiros de luta, sentindo o peso da responsabilidade da morte de cada aliado sobre si. Apesar dessa complexidade, o texto nunca pondera sobre a ambiguidade moral da conduta do protagonista, sobre como mergulhar no abismo para combater monstros periga nos tornar igual a eles. É uma contradição que Spike Lee explorou muito bem em Malcolm X (1992) ao biografar o revolucionário homônimo e que falta um pouco aqui.
Afinal, ponderar as contradições de seu protagonista, se bem conduzido, apenas contribui para torná-lo mais humano, para entender como essa decisão de ir aos extremos o afetava. Aqui, no entanto, não há muito espaço para essas contradições, com o filme assumindo uma postura relativamente maniqueísta. Em outras situações de conflito esse maniqueísmo até poderia ser problemático, mas perto da brutalidade subserviente a potências estrangeiras do regime militar, é fácil entender porque a história é enquadrada desta maneira, já que diante de um regime dessa natureza é um imperativo moral se opor a ele de qualquer maneira possível.
O elenco coadjuvante ajuda a dar humanidade e intensidade aos companheiros de Marighella e isso ajuda a dar peso para a eventual prisão ou assassinato desses personagens (que por, sinal, ressaltam a crueldade e covardia dos agentes da ditadura). Bruno Gagliasso usa a seu favor uma composição relativamente canastrona como Lúcio (personagem ficcional que foi inspirado no agente real do DOPS Sérgio Fleury), um sujeito cruel, sádico e preconceituoso que se diz patriota, mas não vê problema ou contradição em torturar e matar cidadãos brasileiros (mesmo quando os presos já deram toda a informação que tinham) inclusive sob demanda e pressão de agentes estrangeiros.
Com mais de duas horas e meia, o filme traça um panorama competente do que era viver sob o período da ditadura e os desafios vividos pelos que tentavam enfrentar o regime. O final, no entanto, parece disposto a não mandar o espectador para casa com um senso de derrota depois do brutal assassinato de Marighella e insere duas cenas que dão a entender que a morte dele deu início a uma guerrilha ainda mais forte, o que não aconteceu. A perda de uma liderança como a de Marighella foi um duro impacto sobre a ALN que não teve mais o mesmo poder de organização. Ainda assim o filme insere cenas com um detido gritando “vocês perderam” para um torturador ao ouvir sobre a morte de Marighella e outra com os membros remanescentes da ALN reunindo armas, como se o levante pós-morte do protagonista tivesse sido ainda maior.
Entendo que a ideia aqui era também pensar no presente, não apenas no passado. Em usar a trajetória de Marighella como um lembrete para a importância de resistir a governos autoritários e a lembrar que patriota não eram os militares autoritários que oprimiam o próprio povo sob ordens dos EUA, mas aqueles que tentaram (ainda que os meios possam ser discutidos) lutar contra isso. Nesse sentido a cena final, com os membros da ALN cantando o hino nacional, funciona justamente pela força simbólica de vincular um símbolo da nação e do amor a ela aos revolucionários e não aos ditadores. Considerando como símbolos nacionais como a bandeira e o hino foram apropriados nos últimos anos por apologistas da ditadura, extremistas conservadores e autoritários, a cena final nos lembra da importância de tomar de volta os símbolos do nosso país dessas forças retrógradas e obscurantistas.
Marighella é, portanto, um duro lembrete da opressão e violência da
ditadura militar brasileira, do imperativo moral que é combater regimes dessa
natureza e da necessidade de rememorar uma história que muitos insistem em
esquecer ou relativizar.
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