sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Rapsódias Revisitadas – Duna (1984)

 

Análise Crítica – Duna (1984)

Review – Duna (1984)
Como falei no meu texto recente sobre Duna (2021), eu adoro o livro homônimo de Frank Herbert desde a primeira vez que o li ainda na adolescência. Lembro, ao terminar de ler, de ficar animado sabendo que já existia uma adaptação cinematográfica feita em 1984 e dirigida por ninguém menos que David Lynch. O estilo visual e o tipo de narrativa do diretor pareciam ideais para adaptar um romance que tem tantos elementos lisérgicos que chega a ser difícil pensar em transpor para o audiovisual uma narrativa que se passa dentro do fluxo de consciência do protagonista em muitos momentos. Duna (1984) tinha muito em seu favor e ainda assim deu errado, embora não tenha sido exatamente culpa de Lynch.

São notórias das brigas que Lynch teve com os produtores e estúdio durante as filmagens. De uma versão inicial previsto para quase cinco horas, algo que o estúdio considerava comercialmente inviável, o filme foi obrigatoriamente reduzido a meras duas horas, uma duração mais padrão para uma produção hollywoodiana. Isso significava cortes severos no que estava planejado e várias gambiarras narrativas para fazer a trama ter o mínimo de coesão.

Se você estranhou porque o filme tem tanta narração em off, inclusive com muitos eventos da trama sendo transmitidos apenas por narrações, isso acontece justamente pela necessidade de condensar bastante a história. Com isso as narrações são tão expositivas que cansam, principalmente pela escolha de ser tudo sussurrado, como um vídeo de ASMR. Eu entendo que a ideia era fazer essas falas soarem como vozes penetrando em nossa mente, como se estivéssemos nos comunicando telepaticamente com aqueles personagens, mas como o recurso é usado de modo tão insistente acaba cansando e ao invés de fascínio ou estranhamento, essas vozes sussurradas se tornam entediantes. Além disso, chega a ser difícil discernir em alguns momentos quem é que está narrando.

Lynch teria ficado tão insatisfeito com algumas versões do filme que chegou a retirar o nome de algumas delas, com essas versões constando Alan Smithee como crédito da direção. Para quem não conhece, esse era um pseudônimo comumente usado por diretores e roteiristas que não concordavam em como os estúdios usaram o material deles e preferiam não ter o nome associado ao projeto.

Esse, no entanto, é só um dos problemas do filme, que falha também em criar um universo coeso e em desenvolver de maneira consistente os temas centrais da trama. Um exemplo de problemas na construção do universo é como o estilo de luta usado por Paul (Kyle McLachlan), que no livro é descrito de maneira vaga mas que deixa claro que é um modo de luta corporal, transformado no filme em um tipo de arma de fogo sônica. O problema aqui não é divergir do material original, mas que essa mudança não faz sentido no resto do universo construído. Tal como no romance, no universo do filme os personagens tem acesso a uma tecnologia de escudos de energia pessoal que protege de projeteis, tornando armas de fogo ineficientes e forçando todos a focar em combate corporal. Assim, é incoerente que o estilo de luta secreto e altamente eficiente que Paul aprendeu com as Bene Gesserit seja algo que basicamente consiste de tecnologia defasada. Essa escolha, por sinal, foi provavelmente de Lynch, que chegou a declarar que não queria ver “kung-fu no espaço”.

O final vai na contramão dos temas sobre manipulação religiosa e uso de crenças como instrumento de poder. Ao fazer de Paul alguém verdadeiramente capaz de realizar milagres, uma verdadeira divindade, o filme anula toda a discussão sobre como é possível manipular as crenças de uma população para convencê-los a entrar em uma guerra violenta. Afinal, se Paul tem de fato os poderes de um deus, segui-lo fervorosamente e fazer tudo que ele manda não passa mais a ser uma questão de crença, é um fato lógico. Ao invés de nos alertar sobre os perigos de crer em profecias, escolhidos e retórica sobre guerra santa, o filme nos diz que não tem problema em acreditar em tudo isso porque pode ser real.

Por outro lado, o filme acerta na construção visual que evoca uma atmosfera de sonho delirante e apresenta muitas criaturas bizarras, como os líderes da guilda dos navegadores. Com uma predominância de efeitos práticos, a exemplo das marionetes e maquetes usadas nas cenas com os vermes de areia, muita coisa continua funcionando ainda hoje. Por outro lado, alguns elementos não envelheceram muito bem como a sunga de couro usada por Sting ou os efeitos visuais que geram os escudos de energia dos personagens.

Desta maneira, embora tenha um estilo visual bastante distinto e acerte na dimensão lisérgica da narrativa, Duna (1984) falha em construir um universo coeso e em reverberar os temas principais de sua trama.


Trailer

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