segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Reflexões Boêmias: 5 Canções de Sondheim

 Reflexões Boêmias: 5 Canções de Sondheim


Considero Stephen Sondheim um dos melhores e talvez o melhor compositor a trabalhar em musicais da Broadway. Responsável por peças como West Side Story, Gypsy, A Little Night Music, Sweeney Todd, Company ou Into The Woods, Sondheim compôs para alguns dos maiores espetáculos da Broadway, a maioria dos que foram citados aqui (que representam uma pequena parte da produção dele) inclusive foram adaptados para cinema com graus variáveis de sucesso. Sondheim nos deixou na última sexta-feira, 26 de novembro, aos 91 anos e deixa um legado imenso para a música, o teatro e o cinema.

Como uma pequena homenagem e celebração ao seu corpus de produção, resolvi falar um pouco das cinco canções dele que mais gosto. Deixo claro que faço essa lista com base em preferências pessoais mesmo, daquilo dele que mais me toca, me impacta. As escolhas também foram baseadas em músicas que servissem de amostra da versatilidade de Sondheim como compositor, que podia ir de composições simples a altamente complexas (em geral não é fácil cantar Sondheim). Em comum, no entanto, todas essas canções são excelentes em externar aquilo que os personagens sentem. Suas dores, suas dúvidas, seu júbilo e seu afeto. Muitas vezes tudo isso junto. Mesmo com a dor de termos perdido um compositor tão singular, encontro conforto em saber que carregarei as músicas dele comigo para sempre.

 

I Feel Pretty – West Side Story
 

Sondheim compôs as letras para as canções de West Side Story quando tinha apenas 27 anos. Foi o primeiro espetáculo com composições dele a ser efetivamente encenado e foi um estrondoso sucesso que levou o musical a ser adaptado aos cinemas em Amor, Sublime Amor (1961). Parece uma canção de amor simples (e é até certo ponto) mas se olharmos para a letra, com a quantidade de rimas e aliterações contidas nela, veremos que o virtuosismo e complexidade de Sondheim já apareciam aqui. A letra chegou a ser mudada nos cinemas já que no teatro a canção acontecia à noite e no filme era de dia.

O compositor, no entanto, nunca foi um grande fã dessa música. Sondheim costuma dizer que I Feel Pretty não soava coerente com a personagem Maria por conta de a letra ter uma complexidade de vocabulário literário que a personagem não teria ou que a canção não encaixava bem com o momento da trama em que acontecia. Ainda assim, é inegável a leveza e lirismo dessa canção que celebra o quanto amar e ser amado nos faz bem, o quanto o amor nos eleva, nos faz sentir no topo mundo e traz um júbilo inigualável. O fato de que mesmo tão celebrada Sondheim via problemas na composição mostra o perfeccionismo que o compositor buscava em seu trabalho.

 

Rose’s Turn – Gypsy

 

Com letra de Sondheim e música de Jule Styne, Rose’s Turn é considerada por muitos a quintessência do “eleven o’clock number”. O termo é utilizado para definir um número musical bombástico, apoteótico, próximo ao fim do segundo ato de uma peça de dois atos. Como eles costumam a acontecer perto das onze da noite de uma sessão da Broadway eles receberam esse apelido.

O musical Gypsy é baseado na autobiografia da dançaria Gypsy Rose Lee e foca na mãe de Gypsy, Rose (ou Mama Rose), que é a epítome da mãe de artista que projeta na filha todas as frustrações e desejos de sucesso. Não por querer o melhor para as filhas, mas por querer sentir o gosto do sucesso que ela não teve através delas. No musical Mama Rose passa toda a história querendo convencer as filhas de que sempre queria o melhor para elas, mas ao final, depois de ser abandonada por Gypsy e Louise, Mama Rose admite para si, cheia de mágoa, fúria, desespero e ressentimento, a verdade que sempre quis ocultar, a de que queria para si o sucesso das filhas. A canção revela justamente esse desmascaramento da psique da personagem, começando alegre e dando uma guinada sombria. Nas vozes de divas da Broadway como Bette Midler, Angela Lansbury, Patti LuPone ou Bernardette Peters é uma das mais impactantes canções do teatro musical estadunidense.



Send in the Clowns – A Little Night Music

 

Essa talvez seja a canção mais conhecida de Sondheim, gravada por inúmeros artistas, como Frank Sinatra, e que funciona perfeitamente mesmo sem o contexto da peça teatral em que se baseia. A Little Night Music é um musical de 1973 que adapta o filme Sorrisos de Uma Noite de Amor (1955) de Ingmar Bergman. Sondheim compôs essa canção em dois dias durante os ensaios da peça quando ele percebeu que faltava uma canção para a personagem Desirée. A questão é que a atriz Glynis Johns, que fazia a personagem, não tinha um grande alcance vocal apesar de possuir uma bela voz, então Sondheim construiu a letra em cima de frases curtas, sem notas sustentadas e com tempos entre uma estrofe e outra para retomar a respiração. Apesar da letra bem simples, a canção tem uma certa complexidade rítmica, alternando entre dois compassos compostos: o ternário composto (9/8) e o quaternário composto (12/8).

A letra é uma reflexão sobre desilusões amorosas, sobre frustração e raiva pelo relacionamento que não deu certo e pelas pessoas que te deixaram. A personagem Desirée se sente uma tola por ter acreditado que a relação daria certo e por ter calado suas frustrações por tanto tempo. Essa ideia de tolice e fracasso é refletida na letra pelas menções á entrada de palhaços. No teatro de variedades os palhaços eram enviados ao palco sempre que um número dava errado, com o objetivo de distrair os espectadores do fracasso que acabaram de ver e também de dar tempo para que a próxima atração conseguisse ser organizar. Ao falar que deveriam entrar palhaços em cena, Desirée reflete, com melancolia e uma frustração raivosa, sobre o fracasso de seu relacionamento e como ela foi tola em não perceber que Frederik nunca ficaria com ela.



No One is Alone – Into The Woods

 

Into the Woods é um musical que revisita clássicos dos contos de fada com um olhar adulto, ponderando como o moralismo dessas histórias não se aplica à complexidade da vida adulta e apontando a necessidade de repensarmos essas histórias como meio de educação moral e sentimental. Muito da verve crítica se perdeu na adaptação para os cinemas, Caminhos da Floresta (2014), que suaviza muita coisa da versão teatral e foca mais no primeiro ato da peça, que reproduz os contos de fada como conhecemos, do que o segundo ato, que mostra as consequências do “final feliz” sobre aqueles personagens e como tudo está longe de ser feliz.

A canção entra próxima ao fim do segundo ato, sendo a penúltima da peça. A letra carrega em si muito da dualidade que a peça inteira tenta demonstrar sobre os contos de fada que reproduz. De um lado ela lembra os desafios que precisamos enfrentar e que sempre podemos contar com pessoas ao nosso redor. Por outro lado, lembra que decisões têm consequências que afetam a todos e que nem sempre somos os heróis das nossas histórias como queremos acreditar. A letra nos alerta que precisamos pensar nas consequências do que fazemos com os outros “careful, no one is alone”. Que o mundo é menos preto e branco do que pensamos e bem ou mal muitas vezes é meramente uma questão de perspectiva “witches can be right, giants can be good, you decide what’s right, you decide what’s good”. É uma canção que pede que abandonemos a moralidade simples que nos foi ensinada quando crianças e vejamos o mundo pela complexidade que ele possui, sem certezas tão fixas sobre bem e mal.

 

Being Alive – Company

 

Being Alive aparece próxima ao final do segundo ato do musical Company. Nela o protagonista, Bobby, decide que ser um solteirão não é tudo aquilo que ele pensou que seria. O personagem então declara através dessa canção que quer se arriscar no amor, mesmo que tenha o coração partido. Being Alive substituiu Happily  Ever After como a canção final de Bobby, que foi considerada muito sombria e pessimista. O próprio Sondheim considerava Being Alive um recuo medroso em relação à canção que originalmente deveria encerrar o arco de Bobby com uma reflexão mais cínica sobre amor e relacionamentos longos.

Ainda assim Being Alive é sempre citada entre as melhores do compositor e minha favorita dele por conta do olhar sensível e cheio de nuance que sua canção dá ao ato de se entregar a um relacionamento. Apesar de, no fim das contas, ser uma ponderação positiva sobre o amor, a necessidade de entregar a alguém e como uma felicidade compartilhada é mais intensa, a composição de Sondheim está longe de ser ingênua.

Ela é perpassada por um clima de melancolia e por uma letra que reconhece que mesmo relações bem sucedidas envolvem se machucar, magoar o outro, fazer concessões, expor ao outro vulnerabilidades que ele talvez use depois contra você em um momento de irritação. Que amar e deixar alguém entrar em nossa vida e nos conhecer profundamente pode ser desconfortável por nos obrigar a sair de nossa zona de conforto e abrir espaço para que outra pessoa ocupe espaço em nossa vida e tire tudo do lugar. Que mesmo sabendo da bagunça que outra pessoa pode causar quando deixamos entrar no nosso espaço isso nos faz sentir vivos, amados, acolhidos. Que esses sentimentos são tão poderosos, tão intensos, tão marcantes e dão tanto significado à nossa existência que valem à pena o risco, o eventual desconforto e os inevitáveis momentos de dor. É uma canção sobre o amor em todas as suas facetas, em todo o caos e ordem que ele traz às nossas vidas. Nas concessões e partilhas que ele implica. Nas dores e triunfos de estabelecer uma conexão com outro ser humano.

 

 

 

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