terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Crítica – Ataque dos Cães

 Análise Crítica – Ataque dos Cães


Review – Ataque dos Cães
O western é um gênero que fala da realidade histórica dos Estados Unidos. Durante o período clássico hollywoodiano esses filmes ajudavam a construir mitos ao redor da expansão do país rumo ao oeste. Uma expansão na qual o homem branco dominava um ambiente selvagem e bravio com sua coragem e iniciativa. Eram histórias sobre a identidade nacional, o destino do país e sobre a superioridade de um povo. Já tem um tempo que o western adquiriu um caráter mais revisionista, desde produções como Dança Com Lobos (1990) até produções mais recentes como First Cow (2021). Este Ataque dos Cães, novo trabalho da diretora Jane Campion também apresenta um olhar revisionista sobre elementos típicos do western.

Na trama os irmãos George (Jesse Plemons) e Phil (Benedict Cumberbatch) são fazendeiros com um negócio em ascensão. George cuida do lado administrativo enquanto Phil supervisiona o cotidiano dos animais da fazenda. Phil se comporta com um típico caubói de western, um homem estoico e durão, que fala e socializa pouco e tem orgulho de seu bom manejo da terra e dos animais. A relação entre os dois irmãos é abalada quando George se casa com a viúva Rose (Kirsten Dunst), levando ela e o filho Pete (Kodi Smit-McPhee) para morar na fazenda. Aos poucos Phil começa a atormentar Rose e Pete, ridicularizando Rose por suas incursões musicais fracassadas e Pete por seus modos afeminados ou sua paixão por ciência.

Dizer mais sobre a trama seria estragar a experiência de quem vai assistir, já que um dos grandes trunfos é como a narrativa, que adapta um romance de Thomas Savage, toma caminhos completamente inesperados. Principalmente em seus minutos finais, cujo desfecho continuou a me assombrar horas depois dos créditos terem subido. É algo que te pega desprevenido, mas que faz total sentido dentro da revisão do western que Campion tenta construir.

De início parece apenas que a narrativa está virando a chave em seu modo de olhar o arquétipo do caubói silencioso. Aqui revelado como uma figura opressiva, que humilha e intimida qualquer um que não atenda ao seu padrão de masculinidade. Isso se aplica à George, cujas roupas finas e modos educados demonstram que ele não tem qualquer interesse na intensa performance de masculinidade de Phil, mas que claramente se afeta por ela, já que George parece o tempo todo estar pisando em ovos ao falar com o irmão.

Conforme a trama avança, no entanto, vemos mais contornos a Phil e percebemos que essa masculinidade que ele exagera e afasta as pessoas ao seu redor é uma maneira que ele tem de não deixar ninguém se aproximar por vergonha de que vejam quem ele realmente é. Em essência é uma história sobre desejos reprimidos e não realizados. Phil sabe que será incapaz de plenamente se realizar como é de verdade então projeta essa aura de masculinidade exacerbada e ridiculariza os desejos dos outros, como Rose e Pete.

Nesse sentido, a decisão de Phil em ensinar Pete a lidar com os animais da fazenda é igualmente movida pelo desejo de ensinar ao garoto uma performance de masculinidade que ele aprendeu ainda cedo nas mãos do mentor Bronco Henry. Na mente de Phil, ele não está oprimindo ou atormentando Pete, mas ajudando o garoto. Aliás é curiosa a decisão de nunca mostrar flashbacks de Phil com o antigo mentor, já que a maneira com a qual ele fala ou interage com os antigos pertences do falecido caubói evidenciam de maneira implícita a natureza da relação.

É nisso, inclusive, que reside o triunfo da performance de Cumberbatch. Em como o ator constrói esse exterior duro de Phil, mas reveste seu olhar de um desejo latente. Quando Phil atormenta Pete, há algo de benevolente na conduta dele, como se acreditasse estar fazendo uma coisa boa pelo garoto. Do mesmo modo, quando Pete diz enxergar a mesma forma que Phil enxerga à sombra da montanha, Phil olha para o garoto como se finalmente tivesse encontrado um igual.

Kirsten Dunst, por sua vez, faz de Rose uma mulher que vai definhando aos poucos conforme vê suas ambições artísticas se frustrarem e é deixada sozinha em casa para ser atormentada pelo cunhado durante os longos períodos de ausência do marido. Ao fim da trama Rose é quase uma morta viva, um espectro vagando pela propriedade, entregue à depressão e ao alcoolismo. Já Kodi Smit-Mcphee dá algo de enigmático à conduta mansa de Pete, não nos permitindo ver completamente como o personagem processa as humilhações impostas por Phil e isso é importante para a guinada que a relação de ambos dá próximo ao fim.

Aos poucos, Phil se vê encantando pelo modo como Pete lida com naturalidade com a vida na fazenda, principalmente quando ele vê a delicadeza com a qual Pete quebra o pescoço de um coelho ferido. É um momento que não parece ter nada demais quando vemos acontecer, mas que será central para selar os destinos de ambos. Phil crê estar sendo misericordioso com o garoto ao se tornar mentor dele, mas no fim é Pete quem comete um ato cruel crendo em misericórdia.

O desfecho sinaliza como alguém como Phil, um tipo de personalidade exaltada nos westerns clássicos, é uma força opressora que não tem mais espaço em uma sociedade civilizada, pós expansão (e também nos dias de hoje). O caubói não era uma força do progresso, mas uma força de anacronismo, que impedia a felicidade plena de George e Rose, bem como limitava Pete. Por outro lado, Phil é também uma figura trágica, preso a um papel de masculinidade no qual não se encaixa, impedido de viver do modo como realmente se sente feliz.

Essa latência do desejo de Phil é também mostrada pelo uso que o filme faz de planos detalhe. No modo como Phil acaricia o lenço que pertencera ao seu mentor ou no cigarro que passa dos lábios de um personagem para os de Phil, talvez o mais perto de um beijo que o caubói chega durante a trama. Jane Campion consegue filmar de uma maneira que é simultaneamente grandiosa e intimista. Estão presentes os grandes planos abertos que mostram a imensidão erma daqueles espaços, enquanto que também há um uso constante de planos-detalhe para dar conta dos pequenos gestos e olhares que dizem muito sobre aqueles personagens.

Com uma narrativa repleta de guinadas inesperadas e cujo impacto fica com o espectador mesmo horas depois do fim, Ataque dos Cães apresenta uma excelente revisão de certos ideais do western.

 

Nota: 10/10


Trailer

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