segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Crítica – Nomadland

 

Análise Crítica – Nomadland

Review – Nomadland
Dirigido por Chloe Zhao, Nomadland faz um retrato de um Estados Unidos pouco visto e pouco discutido. A parte profunda da nação, às margens, mas que é essencial para o modelo de produção contemporâneo e reflete a natureza da exploração do trabalho atual. Não que Zhao tenha aqui feito um filme denúncia ou que ele exista apenas para falar sobre o capitalismo tardio. O que a diretora quer é entender a vida desses sujeitos, como eles dão sentido a ela, o que move esses indivíduos a assumir essa posição à margem ao invés de tentarem se adequar.

A trama gira em torno de Fern (Frances McDormand), uma mulher na casa dos sessenta anos que passou a morar em uma van e viver como nômade depois que a economia de sua cidade entrou em colapso. Agora Fern vive de trabalhos temporários, rodando o país em busca desses pequenos bicos para poder se sustentar. Em sua jornada, ela encontra apoio em comunidades formadas por outros nômades, tentando lidar com a solidão e a falta de recursos.

Seria fácil reduzir essa história a uma exploração fetichista da pobreza, mostrando apenas o sofrimento e as dificuldades dessas pessoas reduzindo tudo a uma “pornomiséria” (como o péssimo Era Uma Vez um Sonho). Felizmente o olhar de Zhao evita isso e segue com sensibilidade as vidas de suas personagens. Claro, o filme não deixa de mostrar como essas pessoas são fruto de um capitalismo cada vez mais exploratório que precariza as relações de trabalho para dar vantagens a empregadores e consumidores, reduzindo o trabalhador a um animal de carga que não tem outra escolha senão trabalhar sem parar. Por outro lado, Zhao consegue encontrar a beleza, o afeto e a alegria da existência dessas pessoas, mostrando que não estamos diante de meros coitadinhos.

Esse efeito se amplifica pela escolha da diretora de colocar Frances McDormand para interagir com vários “não-atores” que de fato vivem como nômades e muitos deles contam suas histórias reais de vida de como chegaram a essa existência nômade. Vemos Fern forjar conexões emocionais bem reais com esses indivíduos e através das histórias deles percebemos um padrão de pessoas jogadas à margem porque não tem mais como viver normalmente em uma estrutura social que paga cada vez menos pelo trabalho e cobra cada vez mais em custo de vida ou que escolheram se isolar depois de perdas e outros problemas pessoais.

A jornada de Fern mostra como alguém pode construir um “lar” na estrada, aceitando esse estilo de vida e encontrando sentido nele. Por mais precária que seja a vida da personagem, a trama nos mostra como ela encontra uma comunidade na qual se integra, como constroem e compartilham afetos entre si. A fotografia contribui para que percebamos a beleza e lirismo dessa vida, com planos abertos que mostram o céu rosado do deserto no amanhecer revelando o que há para se apreciar neste modo de vida.

Nesse sentido, confesso que o filme me lembrou algumas produções brasileiras recentes. De um lado a ideia de que viver as margens da sociedade não significa apenas miséria e sofrimento, que esses indivíduos também encontram afeto e prazer demonstrando que há valor em suas existências e histórias remete a Temporada (2018), de André Novais, que por sinal também costuma misturar atores profissionais com “não-atores”. Por outro, as noções sobre uma exploração crescente do trabalho que obriga o trabalhador a vagar pelo país em busca de emprego sem nunca ser capaz de sair dessa condição de burro de carga do capitalismo remete a Arábia (2017), de Affonso Uchôa.

É curioso, inclusive que Zhao cite nominalmente a Amazon mais de uma vez no filme como um exemplo desse tipo de predatismo capitalista. Ao mostrar como os trabalhadores da empresa são explorados, a diretora faz um duro lembrete de como a conveniência e baixo custo oferecido por esse tipo de organização (e o mesmo acontece com a Uber e tantas outras) só é possível através da submissão do trabalhador a condições pouco favoráveis de serviço.

Nada disso, no entanto, funcionaria se não estivesse ancorado pelo trabalho de Frances McDormand. Com uma performance discreta que visa manter o olhar realista de Chloe Zhao,  McDormand consegue trazer impacto para os pequenos momentos de afeto e troca de experiências que ela tem com os indivíduos que encontra pelo caminho. Tal como na vida real, não há um grande discurso, um grande momento de explosão emocional, mas uma soma de vários pequenos momentos de troca afetiva que conseguem criar uma conexão emocional poderosa com a personagem.

Com uma condução sensível de Chloe Zhao, Nomadland é um belo retrato sobre as margens do sonho americano, revelando os problemas ao mesmo tempo em que celebra os afetos e o senso de comunidade de seus personagens.

 

Nota: 9/10


Trailer

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