A trama é baseada em eventos reais, contando a história de Anna Delvey (Julia Garner), uma jovem de origem russa que ganhou destaque na alta sociedade de Nova Iorque ao fingir se passar por uma rica herdeira alemã. Ao longo de meses ela circulou na alta roda da cidade e quase conseguiu empréstimos milionários de grandes bancos para construir um clube social de luxo. Eventualmente Anna é presa por conta das várias pessoas e empresas que engambelou em seus esquemas, despertando a atenção da jornalista Vivian Kent (Anna Chlumsky) que decide fazer uma reportagem sobre ela.
Boa parte da razão de nos envolvermos na história é por conta da performance de Julia Garner como Delvey, que dá à personagem um ar enigmático que nos deixa incertos se ela é realmente uma golpista mentindo compulsivamente ou se há algum fundo de verdade nas histórias que conta. A atriz consegue trazer um magnetismo pessoal que nos faz entender como Delvey enredou boa parte da alta sociedade ao mesmo tempo que mostra o lado ególatra e fútil da personagem, que não se importa com ninguém além de si mesma e faz qualquer coisa pela fama, atacando qualquer um que a contrarie.
Mesmo agindo como uma sociopata, Garner também dota a personagem de uma medida de vulnerabilidade, mostrando que há uma garota insegura por baixo de todo esse desejo de fama e riqueza, contribuindo para humanizar a personagem. Muito se falou sobre o sotaque adotado pela atriz, que soa quase como uma versão feminina do Tommy Wiseau de The Room, mas me parece que a mistura de sotaque russo, alemão e um jeito de falar de patricinha californiana foi uma escolha deliberada para mostrar como a persona criada por Delvey é uma espécie de arremedo caricatural das elites estadunidenses e europeias.
Nesse sentido, Delvey é um espelho da futilidade egocêntrica e parasítica das elites que tenta emular e conviver e essa elite não gosta do que vê refletido no espelho de Delvey. De certa forma é o desconforto dessas pessoas com a sinceridade de Delvey em assumir o desejo de viver como uma ricaça que não precisa se preocupar com nada além de festa e ostentação que ultraja as pessoas ao seu redor.
Cada episódio foca em uma pessoa do círculo da protagonista e ao longo da série vemos como esses indivíduos, como o namorado dono de startup ou a amiga jornalista, também são aproveitadores fúteis que querem flanar pela alta sociedade, esbanjar e ganhar sem trabalhar. Cada um deles vivendo uma mentira, forjando uma persona, mas apenas Anna assume isso. Não é por acidente que a trama faça a protagonista cruzar o caminho com outros trapaceiros reais como Billy McFarland (responsável pelo Fyre Festival), Martin Shkreli, além de constantes menções a Donald Trump, talvez o melhor exemplo recente nos EUA de alguém que mentiu e trapaceou para conseguir o que queria.
A trajetória de Delvey é um indiciamento do “sonho americano”, mostrando que esse sonho não consiste de oportunidades iguais ou trabalhar duro, mas de luxo e riqueza sem esforço. É por isso que até mesmo advogados e banqueiros experientes se envolvem fácil com Delvey, porque veem nessa herdeira rica querendo abrir um negócio a oportunidade de dinheiro fácil. Esse percurso de Delvey também mostra como tudo é mais fácil para quem já tem dinheiro, além de demonstrar em muitos momentos o machismo dessa alta sociedade.
Todo esse comentário social é construído com um complexo estudo de personagem conforme a trama progride, mas a série quase põe tudo a perder em seu último episódio. Focado no julgamento de Delvey, a série tenta relativizar o comportamento dela, praticamente colocando-a como vítima, um ponto de vista que vai de encontro ao que é construído no penúltimo episódio quando Vivian conhece a família de Anna e basicamente descobre que ela sempre foi uma sociopata e mentirosa compulsiva desde pequena.
Com isso, é difícil comprar o argumento da série de que ela é uma espécie de vítima ou uma espécie de Robin Hood moderna roubando dos ricos. Por mais que as pessoas dela também fossem aproveitadoras fúteis, Anna de fato mentiu completamente para todas elas e se apropriou sem remorso do dinheiro dos outros apenas para seu ganho pessoal. Considerando que Anna gasta tudo com futilidades, soa forçado que a trama tente defendê-la com a ideia de que roubar dos ricos é apenas retribuição pelas desigualdades. Afinal Anna não queria resolver essas desigualdades nem ajudava outros com seu dinheiro, ela apenas queria acumular para si e manter o status quo de acumulação de capital nas mãos de poucos.
Também soa forçada a ideia de que os milhões do empréstimo para um suposto negócio trariam benefícios para a sociedade, já que dariam emprego, renda, etc. Primeiro porque manteria o dinheiro concentrado em empresários ricos (de imóveis, artes, hospitalidade e outros setores). Segundo porque é pura conjectura de que o negócio daria certo e que ela não tentaria embolsar a grana, o fato é que Anna de fato fraudou processos para receber milhões de bancos.
Nesse sentido a ideia de que a pena de Anna foi injusta ou excessiva também não convence, afinal ela fez todas as coisas das quais é acusada. O fato de que pessoas verdadeiramente ricas, como banqueiros de Wall Street ou outros golpistas que passam pela trama, não receberem a mesma punição dura apenas revela a leniência do judiciário com os mais ricos. O argumento da série não deveria ser que Anna deveria receber uma punição mais leve, mas que outros deveriam receber penas mais duras.
Desta maneira, apesar de um ótimo
trabalho de Julia Garner e de uma competente análise de como Anna espelha os
vícios de uma elite fútil, Inventando
Anna derrapa em um final que desnecessariamente tenta forçar a barra para
transformar sua protagonista em uma espécie de vítima ou anti-heroína.
Nota: 6/10
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