A trama é focada em Alexia (Agatha Rousselle), que desde pequena sempre teve fixação por carros, algo que só se ampliou depois de um acidente em que teve uma placa de titânio colocada na cabeça. Adulta, ela ganha a vida como dançarina, com um número em dança sensualmente enquanto se esfrega em um carro potente. Ela também sente prazer em matar e quando sua última onda de matança lhe coloca na mira das autoridades, ela disfarça a aparência, fingindo ser o filho desaparecido de um bombeiro, Vincent (Vincent Lindon). Um homem tão solitário e carente que acredita em Alexia sem pestanejar.
Claramente influenciada pelo horror corporal de David Cronenberg e o fetichismo por carros e violência que o diretor explorou em Crash: Estranhos Prazeres (1996), Ducurnau começa seu filme falando do nosso fascínio e conexão com máquinas. O carro de Alexia não é um instrumento, é um companheiro que inclusive bate à porta requisitando sexo e eventualmente engravidando Alexia.
A ideia de sexo com carros não é usada como mero exploitation sensacionalista, mas para falar de nosso fetiche por máquinas e tecnologia, como isso se integra de tal modo em nossas vidas que esses elementos maquínicos não são apenas uma extensão do nosso corpo, mas se fundem conosco, nos modificando. Nesse sentido, não é à toa que o filme nos apresente a personagens com corpos “modificados” como a placa na cabeça de Alexia ou o piercing no mamilo de Justine (Garance Marillier). Tal como carros, estamos nos “tunando”, colocando metal e outros elementos no corpo para transpor nossas identidades de outras maneiras.
De pós-humanismo o filme passa a ideias de transgeneridade conforme Alexia se passa por homem para enganar Vincent, que passa a acreditar na performance de masculinidade que a personagem monta, apesar do desconforto de Alexia em assumir uma identidade que não é a sua e do “pai” rejeitar o que vê como traços e condutas mais associadas ao feminino. Vincent é ele próprio um sujeito preso a ideais arcaicos e tóxicos de masculinidade, um sujeito que se contorce sozinho no banheiro injetando esteroides no corpo para manter a performance de virilidade e masculinidade diante de bombeiros mais jovens.
Esse universo hipermasculino dos bombeiros é também retratado como um espaço carregado de energia sexual. Não é à toa que as festas deles são filmadas em tons saturados de roxo e violeta, cores da bandeira da bissexualidade. Como se apesar de estarem em uma boate de strip, eles também tivessem um tesão subjacente uns pelos outros. Isso fica evidente quando Alexia dança para eles em cima do caminhão dos bombeiros, uma visão que deixa o resto do esquadrão confuso e excitado.
Mais do que falar sobre masculinidade, todo o segmento de Alexia com Vincent também fala da solidão desses personagens e como eles são carentes de cuidado e afeto. Não é fácil nos fazer ter empatia por pessoas tão horríveis, mas a trama faz um bom trabalho de expor a fragilidade emocional e senso de desamparo dessas pessoas para que entendamos a conexão, ainda que complicada e não exatamente saudável, que eles formam simplesmente porque estar ali, sob o cuidado de outra pessoa, é melhor do que estar sozinho.
Nem sempre todos esses temas são tratados de modo consistente, mas considerando a quantidade de ideias e caminhos inesperados que a trama toma, Julia Ducurnau consegue manter tudo coeso, fazendo sentido dentro da lógica que sua trama opera e transitando de maneira orgânica entre esses vários elementos. Nas mãos de uma realizadora menos segura de sua visão, seria fácil que tudo descambasse para uma colcha de retalhos bagunçada, no entanto, aqui há um olhar e uma personalidade próprias que dão unidade a todo caos e bizarrice que o filme joga diante de nós.
Titane é uma produção difícil de resumir em poucas palavras, embora
sua construção visual cheia de elementos bizarros que ilustram temas sobre
maquinismo e carência afetiva fazem o filme continuar reverberando na mente
mesmo muito tempo depois dos créditos subirem.
Nota: 8/10
Trailer
Nenhum comentário:
Postar um comentário