terça-feira, 15 de março de 2022

Rapsódias Revisitadas – O Beijo da Mulher-Aranha

Análise – O Beijo da Mulher-Aranha

Review – O Beijo da Mulher-Aranha
Lançado em 1985 e dirigido por Hector Babenco, O Beijo da Mulher-Aranha chama atenção pelo tanto que consegue fazer com poucos personagens e em um espaço limitado. A trama foca em dois personagens, Molina (William Hurt) uma drag queen presa por corrupção de menores e Valentin (Raul Julia), um ativista político detido por fazer parte de um grupo revolucionário que tenta derrubar o governo ditatorial que controla o país. Molina foi incumbido pelo diretor da prisão (José Lewgoy) para se aproximar de Valentin e conseguir dele qualquer informação que os carcereiros não consigam mediante tortura. O problema é que aos poucos Molina se apaixona por Valentin.

Se passando boa parte do tempo dentro da cela de Molina e Valentin, o filme se apoia no desempenho dos dois protagonistas para falar sobre opressão, fuga e liberdade. Os dois personagens são indivíduos perseguidos simplesmente por serem quem são, Valentin por uma ideologia que desagrada ao governo ditatorial (que é claramente uma representação da ditadura militar brasileira) e Molina por sua sexualidade. Suas prisões não são, portanto, apenas a cela física que os detêm, mas também as próprias convenções sociais da época que os tratam como cidadãos de segunda classe.

Apesar de similares em sua situação, são opostos no que se refere à atitude que tomam em relação a isso. Molina prefere lidar com seu aprisionamento (literal e metafórico) através da fuga, se alienando em filmes e narrando suas memórias deles para o colega de cela. Valentin, por sua vez resolveu enfrentar o problema de frente, assumindo sua revolta e fúria com o sistema autoritário sob o qual vive e se juntando a um grupo revolucionário para tentar fazer alguma coisa. Mesmo na prisão e constantemente submetido a torturas, é a raiva que move o espírito de Valentin.

Essa oposição logicamente leva os dois personagens a conflitos, no qual Molina demonstra ter se resignado ao fato de que nada nunca vai mudar e é melhor ele buscar a alienação do que enfrentar um sistema que está todo contra ele. As discussões entre os dois eventualmente também falam sobre a noção de masculinidade, com Valentin constantemente tentando humilhar Molina por seu comportamento supostamente “feminino”. É uma discussão que remete a ideais anacrônicos de masculinidade, principalmente quando sabemos da resiliência de Molina em não contar ao diretor da prisão sobre tudo que Valentin lhe confessa, mesmo sob várias ameaças.

Nesse sentido, não é apenas Valentin que está resistindo a um governo opressor, Molina, ao seu modo, com sua delicadeza, também resiste. Enquanto Molina aprende sobre os problemas de sua alienação, Valentin ao longo da convivência passa a entender o apelo do escapismo de Molina e o quanto isso ajuda o colega de cela a lidar com a realidade sombria em que se encontra, um escapismo que será importante para Valentin nos momentos finais. Ao longo da trama um passa a entender, a apreciar a companhia do outro, com um afeto tão verdadeiro que é raro de ver nessas histórias sobre opostos que se aproximam.

William Hurt é ótimo em convocar um intenso anseio por afeto da parte de Molina. Um sujeito tão maltratado pela vida e tão cheio de afeto dentro de si, desejoso de dar esse afeto a alguém, que se apega à primeira oportunidade de ter alguém para cuidar. É por conta desse afeto sufocado que Hurt transmite com tanta sensibilidade que entendemos o motivo de Molina se apaixonar por Valentin que, por sua vez, também aprende a apreciar a gentileza e afeto do colega de cela dada a situação desamparada em que se encontra. Raul Julia consegue trazer intensidade e fervor à natureza de convicções rígidas de Valentin, um sujeito que se mantem firme mesmo sabendo o final doloroso que o aguarda.

Aliás, o final de ambos é dotado de tragédia e um amargo senso de fatalismo, como que a trama reconhecesse que pessoas como eles não teriam nenhuma chance em um contexto tão opressor. Ainda assim, o desfecho evita ser completamente pessimista ao embarcar no terreno do fantástico, com Valentin sendo levado pela mulher (Sonia Braga) das narrativas que trocava com Molina, como se a morte fosse um alívio diante de tudo que ambos sofreram.

Com ótimas performances de seus protagonistas, O Beijo da Mulher-Aranha é um exame intenso e envolvente sobre opressão, solidão e afeto.


Trailer

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