Não é segredo o quanto eu gosto de Better Call Saul. A cada nova temporada me surpreendo com a qualidade e a construção cuidadosa e sutil de seus personagens. Confesso que inicialmente não estava convencido de que poderia render algo tão bacana. Fazer um prelúdio de Breaking Bad parecia apenas um meio de capitalizar no sucesso da série protagonizada por Walter White (Bryan Cranston), mas o que Vince Gilligan vem entregando ao longo dessas seis temporadas (a sexta e última ainda está em curso) plenamente justifica a existência da série. Aviso que o texto a seguir pode conter SPOILERS da atual sexta temporada.
É compreensível ter inicialmente ficado arredio com a série. Narrativas prelúdio muitas vezes descambam para o puro fanservice apelando para nossa memória afetiva daquele universo ou personagens. Prelúdios como Han Solo: Uma História Star Wars (2018) ou Oz: Mágico e Poderoso (2013) nos mostram os fatos que levaram personagens conhecidos ao ponto em que os conhecemos em suas histórias originais, mas fazem muito pouco para nos ajudar a entendê-los melhor ou lançar nova luz sobre suas ações em suas tramas originais.
Saber, por exemplo, como Han Solo conseguiu seu blaster, sua nave ou como sua amizade com Lando se iniciou faz muito pouco para nos dar algum novo entendimento a respeito do personagem, apenas exibe eventos que, em alguns casos, já éramos capazes de inferir pelo conteúdo da trilogia original. Em Better Call Saul, por outro lado, os eventos que vemos servem para lançar novas leituras em relação a conduta desses personagens em Breaking Bad.
Um exemplo é Mike (Jonathan Banks). Quando escrevi sobre as duas primeiras temporadas da série mencionei como conhecer o passado de Mike e saber que ele se sente culpado pela morte do filho nos faz entender melhor o quanto ele protegia Jesse (Aaron Paul) em Breaking Bad.
Pois ao longo das temporadas, a jornada de Mike só torna ainda mais compreensível e dá mais peso as ações dele em Breaking Bad porque ao longo de Better Call Saul vemos o personagem continuadamente tentar se redimir pelo fracasso com o filho e falhar em proteger as pessoas sob sua tutela. Primeiro com o cientista alemão responsável por construir o laboratório subterrâneo de Gus (Giancarlo Esposito), que ele se vê obrigado a matar para proteger o segredo e por saber que Gus mataria o sujeito de uma maneira mais cruel que o rápido tiro na cabeça dado por Mike. Depois, já na atual sexta e última temporada, vemos Mike tentar e falhar tirar Nacho (Michael Mando) com vida depois dele ter ajudado na ação contra Lalo (Tony Dalton). É visível que Mike valoriza a lealdade de Nacho e tenta mantê-lo vivo mesmo contra o desejo de Gus.
Nesse sentido, é inevitável falar da composição sutil de Jonathan Banks, em especial na cena derradeira de Nacho diante de Gus e Hector Salamanca (Mark Margolis). Observando tudo pela mira de um fuzil de precisão, Mike levemente abaixa os olhos e respira por um segundo ao ver Nacho se suicidar. É um gesto rápido, mas que comunica o pesar de Mike pelo resultado, ao mesmo tempo que denota o respeito dele por Nacho ao ver o jovem tomar o controle do próprio destino ao invés de esperar que outro o elimine.
Gus é outro personagem que ganha novos contornos ao longo de Better Call Saul. Em Breaking Bad já sabíamos da rivalidade dele com Hector Salamanca e o cartel do qual os Salamancas fazem parte. Aqui, porém, vemos a medida do ódio de Gus e como ele conseguiu exercer sua vingança cuidadosamente ao longo dos anos sem ser notado. O fato dele ter sido responsável por deixar Hector no estado debilitado que o conhecemos em Breaking Bad recontextualiza a rivalidade entre os dois.
Saber que Gus poderia ter deixado Hector morrer já aqui em Better Call Saul, mas pagou o tratamento dele apenas para que se recuperasse o suficiente para viver como um inválido em uma cadeira de rodas, incapaz de se mexer ou falar, mostra o quanto Gus é cruel. Condenar o rival a uma vida de agonia é pior do que matá-lo. Ao mesmo tempo, essa é uma escolha que volta para assombrar Gus ao final, já que é o próprio Hector (com ajuda de Walt) que encerra a vida de Gus em Breaking Bad. Uma espécie de justiça poética que pune Gus pelo erro de ter deixado o rival vivo.
Além disso, a vingança final de Hector é mais um elemento que dá força ao discurso de não usar “meias medidas” que Mike faz para Walt. Observando Breaking Bad à luz do que sabemos desde Better Call Saul ajuda a dar mais peso à fala de Mike porque vimos como, inúmeras vezes, o próprio Mike ou pessoas ao redor dele sofreram duras (e fatais) consequências porque resolveram usar “meias medidas” ao invés de soluções definitivas.
A série também levou a relação entre Jimmy/Saul (Bob Odenkirk) e Kim (Rhea Seehorn) por caminhos inesperados. Sabemos que os personagens irão se afastar, mas não sabemos como ou por que e a trama tem sido hábil em nos manter em suspense quanto a isso, algo raro em um prelúdio no qual já sabemos o resultado final. Nas primeiras temporadas fica a impressão de que seria o desgosto com a conduta criminosa de Jimmy que afastaria Kim, mas agora, conforme chegamos na temporada final e vemos Kim ser mais implacável que Saul em seus esquemas (como fica evidente no modo como Kim intimida os Kettleman) fica a impressão de talvez a advogada seja destruída por suas próprias ambições.
Claro, ainda assim seria
resultado de seu contato com Saul, ressaltando, de certa forma, a natureza corruptora
de sua conduta, mas de todo modo, o fim da relação com Kim, a única coisa boa
que ele tem, certamente deve ser o empurrão final para o protagonista abraçar
de vez sua conduta criminosa. Não sei como a série vai acabar ou se fará jus a
tudo que foi construído até aqui. De todo modo, por tudo que foi feito até
agora, Better Call Saul é um ótimo exemplo de
como fazer um prelúdio relevante que nos faz reexaminar e reinterpretar muito
do que vimos na trama original.
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