quarta-feira, 8 de junho de 2022

Crítica – Ruptura: Primeira Temporada

 

Análise Crítica – Ruptura: Primeira Temporada

Review – Ruptura: Primeira Temporada
Tentar equilibrar trabalho e vida pessoal é algo complicado. Inevitavelmente um aspecto de nossa vida interfere no outro. E se fosse possível separar nossa vida pessoal do nosso trabalho? É essa pergunta que faz a série Ruptura, que conta com produção executiva de Ben Stiller, que também dirigiu alguns episódios. A partir dessa pergunta, a série faz intensas reflexões sobre a natureza alienante do trabalho, a importância da memória e como abrir mão de um aspecto de nossa vida seria abrir mão de parte de nossa experiência social e afetiva.

A trama se passa em um futuro próximo no qual a megacorporação Lumon desenvolveu um processo chamado “ruptura”. Nele as memórias do trabalhador são divididas entre o seu eu externo e o seu eu interno (aquele que trabalha). Assim, o indivíduo teria duas identidades separadas, uma na vida pessoal e uma no trabalho, sendo que nenhuma dessas identidades lembra da outra. Um desses trabalhadores é Mark (Adam Scott), que optou pela ruptura depois da morte de sua esposa. Ele trabalha como refinador de dados, embora não saiba exatamente que dados ele está refinando. O cotidiano de Mark muda quando ele é promovido a chefe de seu setor (que tem apenas quatro pessoas) e recebe a nova trainee Helly (Britt Lower), que tem dificuldade de se adaptar ao processo de ruptura.

Se a ideia de dividir a mente entre trabalho e vida pessoal parece inicialmente interessante, já no primeiro episódio vemos como isso é uma péssima ideia quando acompanhamos o cotidiano alienante desses trabalhadores. Sem memória da vida externa, as versões internas dos personagens vivem no trabalho, nunca vendo o mundo exterior e não tendo qualquer autonomia para, por exemplo, pedir demissão. São virtualmente trabalhadores escravos, que não descansam (seus corpos descansam quando eles saem, mas não tem memória disso) e não deram consentimento para a condição que ocupam.

Mais que isso, vemos como trabalhadores sem memória de qualquer vivência fora da empresa são mais facilmente moldados pelas corporações a aderirem a seus valores e filosofia, mesmo que sejam contrárias as convicções do “eu externo”. Vemos isso no modo como os funcionários da Lumon tratam o manual da empresa como uma bíblia e mencionando o fundador e sua família quase como divindades. Como estão alienados de qualquer outra concepção de mundo ou de trabalho que não a fornecida pela empresa, eles creem piamente em tudo que é dito.

A noção de alienação também é expressada pelos longos corredores idênticos pelos quais os personagens percorrem. São espaços labirínticos, difíceis de se localizar e desprovidos de identidade própria. Ao longo da série vemos como o layout do espaço foi pensado para ser propositalmente confuso, para desencorajar os trabalhadores a perambularem ou conhecerem outros departamentos, mantendo os trabalhadores isolados e sem contato uns com os outros. Além disso, termos como “sala de descanso” são usados aqui como elementos negativos, já que a tal “sala de descanso” é o espaço no qual trabalhadores são punidos. Desta maneira, a Lumon (e a série) mostram como um trabalhador sem memória e sem contato com outros trabalhadores para trocar ideias, é reduzido a um robô que vive para trabalhar, condicionado a temer qualquer coisa que não seja o trabalho.

Adam Scott é ótimo em fazer as duas versões de Mark soarem levemente distintas. O Mark externo é um sujeito solitário que luta para reconstruir a vida depois de uma tragédia enquanto que sua versão interna parece ter uma atitude mais positiva e até mesmo ingênua, cultivando o que parece ser uma amizade genuína com os colegas de trabalho. Esse contraste entre um Mark emocionalmente carente em sua vida externa e dotado de amigos internamente serve para mostrar como o processo de ruptura nos priva de várias experiências de sociabilidade. Se Mark não tivesse a ruptura, provavelmente poderia contar com o apoio dos colegas de trabalho também no mundo externo.

Isso fica ainda mais evidente no arco de Irv (John Turturro) que se apaixona por Burt (Christopher Walken), mas nenhum dos dois é capaz de levar o sentimento adiante porque eles são incapaz de socializar fora do trabalho. O desespero de Irv ao saber da aposentadoria de Burt se dá justamente pela realização de que eles nunca mais irão se ver e que o Burt externo não terá qualquer lembrança do afeto que compartilharam, tornando toda a experiência conjunta de ambos um evento descartável, privando ambos de plenamente vivenciarem essas emoções.

A série é também bastante eficiente em criar uma aura de mistério e estranheza em relação ao que acontece na Lumon. Do bizarro museu dedicado aos fundadores, que mais parece algo saído de um culto do que uma exposição de cultura corporativa, passando pelos departamentos com trabalhos inexplicáveis (o que diabos é a sala com os carneiros bebês?), tudo nos deixa intrigados para saber o que exatamente a empresa faz e qual o trabalho dos protagonistas. Algumas cenas, como a de Dylan (Zach Cherry) durante a “festa do waffle”, são tão malucas que parecem saídas diretamente de uma produção do David Lynch.

A temporada ainda consegue surpreender com algumas reviravoltas impactantes no episódio final, principalmente me relação às identidades externas de Irv e especialmente Helly, além de uma importante descoberta por parte de Mark em relação à sua falecida esposa. O desfecho da temporada tem um gancho tão impactante que já estou ansioso pelo segundo ano da série.

Com uma impactante metáfora sobre trabalho, alienação e memória, elevada por sua atmosfera de mistério e estranhamento, Ruptura é a melhor série de 2022 até o momento.

 

Nota: 10/10


Trailer

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