Eu prometi a mim mesmo que só escreveria sobre a segunda metade da temporada de Better Call Saul quando acabasse, mas o nono episódio desse sexto ano foi tão bom que não tenho como não falar nada. De certa forma o tema central da série era o mesmo de Breaking Bad: o de como o crime corrompe e destrói mesmo alguém que não era maligno. Walt começa com boas intenções e se dedica tanto ao seu império de metanfetamina que relega a família, o exato motivo para ter feito tudo aquilo, a algo menos importante e põe tudo a perder.
Algo similar acontece aqui em Better Call Saul. Jimmy/Saul (Bob Odenkirk) já apreciava pequenos golpes, é verdade, mas no início da série ele está tentando agir corretamente para recuperar o respeito do irmão mais velho. Kim (Rhea Seehorn) era uma advogada correta, tentando transformar o mundo positivamente com seu trabalho, embora claramente apreciava os pequenos esquemas de Jimmy, como o de conseguir comer de graça em um hotel. Ambos, no entanto, tem sua relação destruída por cruzarem certos limites na tentativa de desmoralizarem Howard (Patrick Fabian), cujas consequências são muito piores do que poderiam imaginar.
Mike (Jonathan Banks) também não é um sujeito maligno em essência. Vemos como ele começou a fazer pequenos bicos de segurança para criminosos para fazer um dinheiro extra e ajudar a nora (além de expiar a culpa pela morte do filho), porém como resultado disso ele acaba trabalhando para um implacável chefe do tráfico e se torna plenamente um criminoso, ainda que tente manter um senso de honra. Cito esses três personagens porque o nono episódio, de certa forma é a culminância das consequências das ações desses três e quando deixados com essas consequências, eles não gostam do que veem.
Vamos falar de Kim e Jimmy. Primeiramente não deixo de me impressionar como a série transforma algo que seria uma fragilidade (o fato de conhecermos os destinos dessas pessoas) em sua principal força dramática e de construção de tensão. Sabemos que Kim não faz parte da vida de Saul porque ela nunca é citada em Breaking Bad então supomos que é inevitável que eles se distanciem. Ainda assim, o como isso acontece é deixado em suspense e quando isso acontece não deixa de ser impactante.
O “começo do fim” é a cena entre os dois depois do funeral de Howard. No funeral eles percebem que as consequências das ações deles são ainda piores. Eles não apenas levaram à morte do advogado e destruíram sua reputação, eles apagaram todo o legado de Howard. Com a morte dele, o prédio da firma de Howard seria vendido e a firma mudaria de nome, tirando o de Howard. Jimmy e Kim desfizeram o trabalho de uma vida inteira de uma pessoa apenas para pregar uma elaborada peça. Tanto Odenkirk quanto Seehorn são eficientes em mostrar o sutil incômodo que ambos demonstram ao serem confrontados com essas consequências.
Kim fica visivelmente consternada
ao inventar uma mentira sobre o vício de Howard para a viúva dele. Ao usar
contra a viúva o casamento fracassado dela e Howard ao dizer “você deveria
saber” Kim claramente se sente mal consigo mesma por ser tão cruel com uma
mulher num momento tão vulnerável. Na saída do funeral vemos Kim e Jimmy em um
estacionamento, eles são enquadrados em um plano aberto, distantes um do outro.
Os rostos de ambos estão parcialmente iluminados nos planos mais em close. Kim
o beija e entra no carro, quando se vai deixa Jimmy sozinho no escuro, como se
tivesse levado embora a luz dele, aquilo que o estimulava a tentar ser bom.
Jimmy é deixado na escuridão |
Isso serve como uma metáfora visual para o que acontecerá posteriormente entre os dois, quando Jimmy chega em casa depois de descobrir que Kim deixou o Direito. Ele tenta argumentar com ela, mas logo vê as caixas no quarto e percebe que a decisão de Kim já foi tomada. Sabíamos que haveria uma ruptura entre os dois, ainda assim é impactante ouvir Kim responder “eu também, mas e daí?” quando Jimmy diz que a ama. A resposta dela não é um menosprezo pelos sentimentos do marido ou de si mesma, mas um reconhecimento de que existem coisas maiores na relação deles do que isso, principalmente no modo como eles estimulam o pior do outro. Depois dos eventos com Howard, Kim não consegue viver com as consequências e resolve abandonar tudo. Quando voltamos a ver Jimmy, ele se tornou completamente Saul Goodman.
Outro personagem que é visto sozinho no escuro é Mike. Depois de eliminar Lalo e dissipar as suspeitas dos líderes do cartel, ele e toda a operação de Gus (Giancarlo Esposito) estão seguros novamente. Quando Gus conta a Mike que tudo vai voltar ao normal esperamos que Gus vá expressar algo pelo trabalho diligente e cuidadoso de Mike com a situação, entretanto, Gus apenas ordena que Mike tome medidas para terminar a construção do laboratório subterrâneo. A câmera fixa no rosto de Mike e em meio à expressão impassível de Jonathan Banks há um breve vislumbre de desconforto com tudo aquilo. É como se naquele momento Mike se desse conta da real extensão da frieza de Gus.
Talvez seja por isso, por perceber o quanto se afundou e o quão terrível é a pessoa para a qual trabalha, que Mike resolva procurar o pai de Nacho. Naquele momento Mike desesperadamente precisa ser lembrado de que é um bom sujeito, de que apesar de estar cercado de criminosos implacáveis não é igual a eles. Nesse sentido não é a toa que a conversa com o pai de Nacho ocorra diante de uma cerca, uma barreira física que representa a barreira simbólica que existe entre os dois.
Mike esperava algum alento do pai
de Nacho, mas apenas ouve que é só mais um gângster como qualquer outro. Mike
solta um suspiro de pesar ao ser deixado sozinho na escuridão. Ele foi em busca
de uma confirmação de que tinha uma moral elevada em relação às pessoas que o
cercam e foi lembrado de que é igual a elas. Tendemos a achar Mike ou Jimmy
melhores do que Gus ou Lalo (Tony Dalton) porque eles são os protagonistas e
porque, em comparação, os dois ao menos tem alguma virtude. O pai de Nacho,
porém, nos lembra do que é realmente retidão moral.
Mike não encontra o perdão desejado |
Quem também é deixado sozinho na escuridão é Gus. Na reunião com Don Eladio, Gus põe um fim nos boatos de que Lalo sobrevivera ao atentado e de que estaria tramando contra o cartel. Depois de garantir que Gus poderia continuar trabalhando normalmente, Eladio vai embora e Gus fica sozinho à beira da piscina, sendo iluminado apenas pelo reflexo da água. Se antes Don Eladio estava cercado por tenentes dos Salamanca, agora apenas Gus restou e Eladio está mais vulnerável. Ali ele contempla o quão mais perto está de sua vingança. Uma vingança que executará anos mais tarde à beira da mesma piscina. Se para Mike e Jimmy as cenas em que são deixados sós na escuridão representam pontos baixos para eles, aqui representa Gus abraçando seu propósito. Ele está exatamente onde deseja.
Gus observa o reflexo da piscina |
Não é à toa, portanto, que o momento seguinte em que encontramos Gus em um inesperado momento de comemoração. Depois de conseguir exatamente o que ele queria, Gus vai ao seu restaurante favorito e começa uma conversa animada com um maître sobre vinhos exóticos. Aqui vemos quem Gus poderia ser sido, espirituoso, articulado, um bon vivant apreciador da cultura e da gastronomia. A conversa segue em tom de flerte e Gus está preparado para chamar o maître para sair quando ele se afasta para ir pegar mais um vinho caro para Gus. Nesse momento a expressão de Gus muda repentinamente. Toda a leveza em seu rosto vai embora e dá lugar à expressão taciturna típica do personagem.
O olhar de Giancarlo Esposito nos faz entender a mudança e o que se passa no universo interno do personagem. É como se naquele momento Gus se desse conta de que chamar o rapaz para sair seria uma distração desnecessária, como se Gus realizasse que um relacionamento o colocaria numa posição de fraqueza e de vulnerabilidade frente aos inimigos. Que alguém poderia usar essa pessoa da mesma forma que Lalo tentou usar Kim contra ele. Seria um risco, um risco que ele não poderia correr. Assim, ele opta por cerrar a expressão, deixar a gorjeta no balcão e ir embora. Gus prioriza se manter focado em seus planos e não dar espaço para mais nada em sua vida.
Ao longo do episódio vemos como esses três personagens (Jimmy, Gus e Mike) são mergulhados literal e metaforicamente na escuridão. Essas cenas ressaltam as transformações dos personagens até aqui. A culminância de seus arcos em relação a onde eles estavam no início da série e como eles eram quando os conhecemos em Breaking Bad. O fato da série ter completado as jornadas desses personagens em relação ao que sabíamos dele quando ainda tem quatro episódios restando só me deixa mais curioso pelo que virá a seguir.
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