Na trama, Kamala (Iman Vellani) é uma adolescente de origem paquistanesa que é fã de super-heróis, principalmente da Capitã Marvel (Brie Larson). A vida de Kamala muda quando ela usa um antigo bracelete que pertenceu a sua bisavó e ganha estranhos poderes de manipular energia. Essas habilidades colocam ela na mira do Controle de Danos, agência governamental que monitora indivíduos com potencial destrutivo, e também de um grupo de seres poderosos interessados no bracelete.
A trama é menos sobre combater uma ameaça específica e mais sobre Kamala compreender seu lugar no mundo como uma filha de imigrantes que vive em um constante entrelugar entre o país no qual nasceu, com tudo que ela se identifica nele, e a cultura de sua família cuja comunidade é parte integral da vida dela. É uma questão que impacta boa parte das segundas gerações de imigrantes, principalmente dos imigrantes que são tratados como cidadãos de segunda classe ou como ameaça pelos EUA, a exemplo dos muçulmanos.
Violência colonial
O arco de Kamala toca em questões de colonialismo e como a violência colonial impacta gerações ao falar da partição do território da Índia e Paquistão pelos colonizadores britânicos. A partição é mostrada como um violento expediente colonial para controlar as populações colonizadas e fomentar rivalidades para manter os colonizados ocupados (as disputas entre hindus e muçulmanos permanecem na região até hoje) enquanto o colonizador fica livre para agir. Ao revisitar seu passado familiar descobrimos como a partição apagou as histórias e a conexão de várias famílias com suas origens e o fato de Kamala precisar viajar no tempo para devolver à avó uma foto de infância com os pais que ela achava ter perdido simboliza a reparação do apagamento da violência colonial e a necessidade de recuperar essas histórias.
De certa forma essa violência colonial reverbera nos dias de hoje no modo como a comunidade da protagonista é tratada pelas autoridades. A maneira truculenta com a qual a agente Deever (Alysia Reiner) entra na mesquita do bairro de Kamala, tratando a todos como criminosos em potencial mostra a xenofobia do Estado e o tratamento de cidadãos de segunda classe ao qual aquele grupo é relegado. Um exemplo é o momento em que todos na mesquita sacam os documentos de identidade antes mesmo de Deever pedir, denotando como as pessoas do local estão acostumadas àquele tratamento das autoridades.
A série ainda demonstra como
Deever vai de encontro aos valores da própria nação que ela julga defender
quando Abdullah (Laith Nakli) cita Abraham Lincoln e Deever desdenha da frase
julgando ser do Corão, tratando o líder religioso como um zelote qualquer. A cena
mostra que esses imigrantes tratados como indesejados e criminosos entendem
mais o espírito da nação do que uma agente do governo que clama ser patriota e
defender interesses nacionais.
Amadurecimento e relações familiares
Iman Vellani é ótima em convocar o deslumbramento juvenil de Kamala com os novos poderes. Esse sentimento é auxiliado pelo uso de sequências animadas que ilustram a imaginação ativa da personagem, sendo uma pena que esse recurso fique mais limitado aos primeiros episódios. Esse aspecto ingênuo e sonhador de Kamala contribui para um clima de leveza e humor, sem sacrificar o peso dos momentos dramáticos e das questões relacionadas a imigração e colonialismo. É uma personagem que genuinamente soa como uma adolescente e não com a imagem que um adulto faz de um adolescente. É uma garota dando seus primeiros passos em busca de alguma independência e identidade próprias, o que significa que ela age de maneira imatura, comete erros e entra em conflito com os pais. A relação de Kamala com a família é outro ponto alto da série, em especial com a mãe, Muneeba (Zenobia Shroff).
Se Muneeba inicialmente soa coma a típica mãe superprotetora, limitante e demasiadamente apegada às tradições, aos poucos descobrimos o quanto a conduta dela com Kamala é uma projeção das dificuldades que ela própria experimentou (de novo as consequências da violência colonial aparecendo) e o desejo de querer uma vida melhor para filha. Os momentos de conversa sincera entre as duas, principalmente a cena entre Kamala, Muneeba e a avó de Kamala pontuam o afeto que existe naquela família e trazem uma emoção tão sincera que realmente acreditamos que aquelas pessoas são mãe e filha.
Eu não poderia deixar de registrar, porém, o incômodo das pontes aéreas estilo Glória Perez com as personagens indo e voltando dos EUA para o Paquistão como se fosse logo ali e não uma viagem longa e desgastante. Inclusive é estranho que a mãe de Kamala entregue a ela a caixa com o uniforme que fez para a garota, sendo que na cena anterior a adolescente diz que acabaram de chegar de viagem. Quando, então, Muneeba costurou esse uniforme? Durante o voo de volta?
Outro elemento importante de ser
mencionado é a mudança nos poderes de Kamala. Nos quadrinhos ela pode modificar
o corpo, quase como poderes elásticos, enquanto aqui ela projeta luz e energia,
algo mais similar ao Lanterna Verde. O problema nem é a mudança em si, mas como
as características dos poderes eram essenciais para o desenvolvimento da personagem.
O fato da personagem ter poderes “feios” que deformavam o corpo fazia parte da
jornada de autoaceitação de Kamala, fazendo-a entender que não precisa se
conformar a certos padrões de beleza ou normalidade para ser quem é ou ter valor
como heroína. A ideia de que “não há normal” ainda está presente, a personagem chega
a dizer isso no episódio final, mas a mudança nos poderes diminui um pouco do
peso disso nela.
Como a série é focada no percurso de Kamala e durante muito tempo não há um antagonista claro há aqui um pouco menos ação do que se espera em uma trama de super-heróis. Não vejo isso necessariamente como um problema, histórias de super-heróis não precisam sempre seguir o mesmo molde, mas aviso porque sei que muita gente tem expectativas bem delimitadas em relação a esse tipo de história.
A ação que está presente é bem
realizada, embora apenas o embate final entre Kamala e o Controle de Danos
consiga explorar de modo mais empolgante os poderes da personagem. O segmento
que antecede esse confronto, com os agentes sendo emboscados por armadilhas
improvisadas na escola de Kamala, oferece momentos divertidos, mas exige
boa-vontade para crer que um grupo grande de agentes treinados para lidar com
ameaças poderosas seria tão facilmente dominado por ardis simples.
Implicações para o universo Marvel
Falando no desfecho, é curioso como a série meio que fecha um ciclo de decisões editoriais da Marvel. Na época que Kamala foi criada nos quadrinhos, a Marvel estava tentando dar mais proeminência aos inumanos na tentativa de usá-los no lugar dos X-Men, cujos direitos para o cinema estava com a Fox. Daí a decisão de criar Kamala como uma inumana e expandir o papel dos inumanos no Universo Marvel, não mais limitando-os a comunidade na cidade lunar de Attilan. O mesmo acontecia em projetos de audiovisual da Marvel, com a série Agentes da Shield introduzindo inumanos e a heroína Tremor (Chloe Bennet) e a própria série da família real na pavorosa Inumanos.
Os inumanos nunca chegaram à popularidade esperada para rivalizar com os X-Men e com a compra da Fox a Disney/Marvel recuperou os direitos dos mutantes no cinema. Daí que a editora não tinha mais utilidade para os inumanos (que também não tinham tanta popularidade) e necessitavam voltar a dar destaque aos mutantes o quanto antes. Isso já vem acontecendo nos quadrinhos, mas os mutantes nunca tinham dado as caras no universo audiovisual da Marvel. Isto é, até agora, já que Kamala é aqui revelada como mutante, praticamente encerrando a tentativa da Marvel de dar mais popularidade aos inumanos.
Sem abrir mão de um senso de
encantamento e diversão, Ms. Marvel entrega
um competente estudo de personagem que reflete sobre amadurecimento,
pertencimento, imigração e violência colonial.
Nota: 8/10
Trailer
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